São Paulo, sábado, 07 de maio de 2005

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CRÍTICA

Epopéia nórdica tenta encontrar a face oculta do homem moderno

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O início e o fim de "O Meio-Irmão" se passam num tempo presente e num mundo globalizado. Em meio a uma negociação internacional ocorrida durante o festival de cinema de Berlim, menciona-se um roteiro do protagonista, Barnum Nielsen, chamado "Os Vikings".
Foi idéia do agente dele: "Os americanos inventaram o "western", filmes do oeste, os japoneses fizeram os filmes de samurais, filmes do leste, não é mesmo, e os italianos, o "western" espaguete. O que sobra para nós então? [...] O filme do norte, Barnum." E o filme do norte refere-se às velhas sagas escandinavas, à conquista das terras geladas, a homens fortes, "que trepam sobre cobertores de pele a céu aberto e choram a cada duas cenas". Essa imagem é o contraponto essencial para entender a epopéia que se desenrola pelas quase 600 páginas.
No lugar da narrativa solar dos vikings, o autor apresenta sua saga íntima e familiar sobre os "homens noturnos" da família e sobre as mulheres, elas sim os seres fortes, que os amparam e defendem o lar. A família é um matriarcado, e os homens são falhados ou desaparecidos, ou pior.
A figura que paira sobre todas elas é a Velha, ex-atriz dinamarquesa do cinema mudo, cujo amado morreu nas geleiras da Groenlândia, e que veio à Noruega com a filha Boletta. Sua neta, Vera, é estuprada por um desconhecido no dia em que a Europa é libertada das mãos dos nazistas.
O fruto da concepção maculada é Fred. Durante toda a vida, Barnum, segundo filho de Vera, procura entender esse seu meio-irmão calado e soturno, que fica desaparecido 28 anos. De modo que a saga se instaura não só como contraponto aos heróis lendários do passado, mas para investigar a gênese obscura e a face oculta do homem moderno, sempre instável, que Fred representa.
Falou-se aqui muito em saga ou epopéia. Mas, ao contrário delas, Christensen interessa-se pelo miúdo, pelas pequenas ações e perfídias, que vai desfiando num movimento hipnótico, página após página. A impressão é que se vê tudo, mas zonas extensas são deixadas propositadamente nas sombras, como, por exemplo, as dúvidas sobre o pai de Fred ou boa parte das motivações dos personagens. Como no cinema, o mistério está naquilo que a câmera não consegue captar.
Ou, conforme diz Barnum: "Noventa por cento de nossa percepção passa pelo olhos, a audição representa cinco por cento, e o resto é olfato e dor". A dor é o tema secreto do romance, em torno do qual todos os outros se entrelaçam e se revelam.


O Meio-Irmão
    
Autor: Lars Saabye Christensen
Tradução: Francis Henrik Aubert
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 69,90 (584 págs.)
Na Bienal do Rio: Christensen participa de encontro no dia 14/5, às 15h, no Pavilhão Verde<



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