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Crítica/Matthias Goerne e Sinfônica de Bamberg
Goerne leva canções de Mahler ao limite
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Com Gustav Mahler
(1860-1911) a canção
chega a um limite de si.
Fala conosco do lado de lá, como se o nosso mundo já fosse
uma memória, ou uma ruína, e
cada um de nós a testemunha
do desastre. Este parece ainda
mais o caso no ciclo "Des Knaben Wunderhorn" (A Trompa
Mágica do Menino), antologicamente cantado pelo barítono
alemão Matthias Goerne, com
a Sinfônica de Bamberg regida
por Jonathan Nott, segunda-feira na Sala São Paulo.
Tudo fica ainda mais eloqüente quando se pensa na história da orquestra, fundada logo depois da Segunda Guerra,
em 1946, com músicos alemães
refugiados. A Sinfônica de
Bamberg se tornaria uma espécie de embaixadora da nova
Alemanha; segue até hoje fazendo turnês pelo mundo. Desde 2000 é dirigida pelo inglês
Jonathan Nott, também principal regente convidado do Ensembe Intercontemporain, o
conjunto de música contemporânea do compositor Boulez.
Bamberg e Nott tocaram pela
última vez aqui em 2003, num
programa que trazia, entre outras coisas, a Sinfonia "Renana", de Schumann (1810-56). O
grande barítono Matthias
Goerne, de sua parte, veio a São
Paulo há oito anos, para cantar
nada menos que os três grandes
ciclos de "lieder" de Schubert
(1797-1828). (Ele agora está
gravando, pela segunda vez, a
integral de canções de Schubert, em 12 CDs.)
Nada é coincidência, como
sabiam Mahler e seu psicanalista, o doutor Freud. Assim, o
coral de trompetes no "Adagio"
da "Segunda Sinfonia" de
Brahms (1833-97), que a Sinfônica de Bamberg tocou na segunda parte do concerto, anteontem, remetia indiretamente à "Renana"; assim como a
canção do "Sermão de Santo
Antônio" remete à "Segunda
Sinfonia" de Mahler e ainda à
"Sinfonia" de Berio (1925-2003), que incorpora o movimento. Esse jogo de referências
invertia agora, com consciência, a direção do tempo; e dava a
medida da arte desses músicos.
Faz poucos meses que outro
grande barítono, Thomas
Hampson, cantou seis dessas 11
canções na Sala. A diferença
entre Hampson e Goerne é esclarecedora. O primeiro faz um
Mahler dramático, operístico,
cada canção transformada numa cena. Já Goerne parece que
canta para dentro da música,
tanto ou mais do que para fora.
O drama é interno. Cada canção se transforma em devaneio,
expressiva e delicadamente individual.
Sem prejuízo das amplidões
orquestrais, a música de Mahler ganha com ele uma outra
dimensão. É música de câmara
sinfônica, se se pode dizer isso.
Cada sílaba, uma pequena cifra.
Esplendidamente, discretamente acompanhado pelo regente, o ciclo é a música da música, nos dois sentidos da expressão (essência e referência).
Depois disso, a "Segunda Sinfonia" já era também o Brahms
do Brahms. Um acontecimento, para não ser esquecido, já
para lá do meio do caminho, na
vida desses nossos tímpanos
tão fatigados.
Avaliação: ótimo
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