São Paulo, quarta-feira, 07 de maio de 2008

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Crítica/Matthias Goerne e Sinfônica de Bamberg

Goerne leva canções de Mahler ao limite

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Com Gustav Mahler (1860-1911) a canção chega a um limite de si. Fala conosco do lado de lá, como se o nosso mundo já fosse uma memória, ou uma ruína, e cada um de nós a testemunha do desastre. Este parece ainda mais o caso no ciclo "Des Knaben Wunderhorn" (A Trompa Mágica do Menino), antologicamente cantado pelo barítono alemão Matthias Goerne, com a Sinfônica de Bamberg regida por Jonathan Nott, segunda-feira na Sala São Paulo.
Tudo fica ainda mais eloqüente quando se pensa na história da orquestra, fundada logo depois da Segunda Guerra, em 1946, com músicos alemães refugiados. A Sinfônica de Bamberg se tornaria uma espécie de embaixadora da nova Alemanha; segue até hoje fazendo turnês pelo mundo. Desde 2000 é dirigida pelo inglês Jonathan Nott, também principal regente convidado do Ensembe Intercontemporain, o conjunto de música contemporânea do compositor Boulez.
Bamberg e Nott tocaram pela última vez aqui em 2003, num programa que trazia, entre outras coisas, a Sinfonia "Renana", de Schumann (1810-56). O grande barítono Matthias Goerne, de sua parte, veio a São Paulo há oito anos, para cantar nada menos que os três grandes ciclos de "lieder" de Schubert (1797-1828). (Ele agora está gravando, pela segunda vez, a integral de canções de Schubert, em 12 CDs.)
Nada é coincidência, como sabiam Mahler e seu psicanalista, o doutor Freud. Assim, o coral de trompetes no "Adagio" da "Segunda Sinfonia" de Brahms (1833-97), que a Sinfônica de Bamberg tocou na segunda parte do concerto, anteontem, remetia indiretamente à "Renana"; assim como a canção do "Sermão de Santo Antônio" remete à "Segunda Sinfonia" de Mahler e ainda à "Sinfonia" de Berio (1925-2003), que incorpora o movimento. Esse jogo de referências invertia agora, com consciência, a direção do tempo; e dava a medida da arte desses músicos.
Faz poucos meses que outro grande barítono, Thomas Hampson, cantou seis dessas 11 canções na Sala. A diferença entre Hampson e Goerne é esclarecedora. O primeiro faz um Mahler dramático, operístico, cada canção transformada numa cena. Já Goerne parece que canta para dentro da música, tanto ou mais do que para fora. O drama é interno. Cada canção se transforma em devaneio, expressiva e delicadamente individual.
Sem prejuízo das amplidões orquestrais, a música de Mahler ganha com ele uma outra dimensão. É música de câmara sinfônica, se se pode dizer isso. Cada sílaba, uma pequena cifra. Esplendidamente, discretamente acompanhado pelo regente, o ciclo é a música da música, nos dois sentidos da expressão (essência e referência).
Depois disso, a "Segunda Sinfonia" já era também o Brahms do Brahms. Um acontecimento, para não ser esquecido, já para lá do meio do caminho, na vida desses nossos tímpanos tão fatigados.


Avaliação: ótimo

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