São Paulo, Sexta-feira, 07 de Maio de 1999
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Eis o filho da luz


Famoso assassino brasileiro dos anos 20 vira tema de livro de Carlos Augusto Calil


ERIKA SALLUM
da Reportagem Local

Na década de 20, o Brasil elegeu seu grande inimigo: era negro, homossexual, pobre, louco, assassino. Seu nome: Febrônio Índio do Brasil, acusado de matar e estuprar garotos no Rio de Janeiro.
Autodenominado "o filho da luz", epíteto que tatuou no próprio peito, escreveu durante uma de suas prisões "As Revelações do Príncipe do Fogo", uma espécie de evangelho readaptado cheio de frases desconexas como "Eis-me ó nuvens fiéis do Santuário do Tabernáculo do Testemunho".
O livro teve sua edição queimada pela polícia e tornou-se raridade existente apenas na memória de gente como o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, que chegou a adquirir a obra das mãos do criminoso quando este, ainda em liberdade, vendia sua criação nas ruas do Rio.
Até que o cineasta e professor da USP Carlos Augusto Calil encontrou, há cerca de quatro anos, um último exemplar do livro na biblioteca do gênio modernista Mário de Andrade, repleto de anotações como "admirável" e "erudição deliciosa".
Fascinado pela figura de Febrônio desde os anos 70, quando pesquisava a vida do poeta Blaise Cendrars -outro admirador do criminoso- para o filme "Acaba de Chegar ao Brasil o Bello Poeta Francez Blaise Cendrars", Calil decidiu publicar o achado.
"As Revelações do Príncipe do Fogo" será lançado pela editora Giordano em agosto. No mesmo volume, Calil compilou artigos de jornal, laudos médicos, crônicas e até uma música sobre o assassino.
"Além de um delírio místico, o livro de Febrônio é um testemunho patético de exclusão social. É a tentativa desse homem de buscar uma identidade numa sociedade que o rejeita. Para isso, ele se imagina um profeta, um portador da voz divina que lhe daria relevância", diz Calil.
Mas quem era Febrônio Índio do Brasil, cujo nome assustava quando criança o escritor Carlos Heitor Cony, que dedicou ao assassino uma de suas crônicas ("na minha infância, ao ouvir o nome de Febrônio, ninguém poderia se vangloriar das cuecas limpas...")?
Nascido em Minas Gerais no final do século passado, chegou ao Rio ainda pequeno. Até 1927, vivia de pequenos golpes, em muitas ocasiões se passando por dentista.
A "fama" surgiu quando matou dois garotos. "Os meninos acompanharam Febrônio depois que ele convenceu seus pais de que lhes arrumaria emprego. Num matagal, tentou violentá-los e depois os asfixiou", conta Calil.
No corpo dos rapazes, tatuou a mesma marca que trazia no peito: DCVXVI -que significava, segundo ele, "o Deus vivo".
Capturado pela polícia, Febrônio -que na verdade se chamava Pedro- foi manchete de jornais, alvoroço na cidade. Ganhou até uma modinha, de José da Costa Jr., chamada "Mãos Criminosas":
"Mãos criminosas/ Que só vivem a matar/ Facinorosas (...)"
Seus crimes provocaram discussões, inclusive científicas: havia quem o achasse um louco; outros classificavam-no de marginal dissimulado e insinuante.
"Febrônio passa a ser objeto de disputa científica. Jornais chegaram a publicar artigos que citavam Freud e o complexo de Édipo para contra-argumentar a visão determinista vigente que definia delinquentes segundo o tipo físico. Você vê claramente uma teoria sendo substituída por outra", diz Calil.
Julgado, Febrônio é considerado inimputável, um demente sem noção de seus atos. Acaba internado no Manicômio Judiciário do Rio -sua ficha é a de nº 00001.
O criminoso volta a ser notícia em 1935, ao fugir do hospício carioca de forma espetacular: pula o muro, engana os guardas e sai andando normalmente.
De volta ao manicômio, só sairia dali morto, em 1984, após mais de 50 anos de tratamentos de choque, drogas fortíssimas e maus-tratos. Imagens suas já velho revelam um homem deteriorado, senil.
"Ao considerá-lo inimputável, selaram sua prisão perpétua. Se tivesse sido julgado, pegaria uns 30 anos e depois seria libertado. Mas que pessoa seria após três décadas de confinamento? Provavelmente um Bandido da Luz Vermelha, um homem totalmente inadaptável que logo encontrou um fim violento", finaliza Calil.


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