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CINEMA - "CRIME VERDADEIRO"
Para o cineasta, o crime verdadeiro é a televisão
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
São tantos os aspectos a observar
em "Crime Verdadeiro" que mais
vale isolar um deles, à primeira vista contingente, que é a função da
TV na vida contemporânea.
O novo filme de Clint Eastwood
tem dois pólos. Num, está Frank
Beechum, um presidiário negro,
no dia de sua execução. No outro,
o veterano repórter Steve Everett,
cínico, frustrado e mulherengo.
Tendo herdado a missão de entrevistar Beechum, ele chega à conclusão de que a culpabilidade do
condenado não está estabelecida.
O desimportante "Oakland Tribune" quer dele uma reportagem
"humana": como se sente o condenado no dia da morte, se está arrependido, essas coisas. Algo não
muito diferente do que faz a TV,
em suma. A TV não faz senão martelar o óbvio cretinizante: declarações deste ou daquele, detalhes sobre a execução, entrevista com a
testemunha do crime etc. etc.
À parte o cinismo transbordante,
no entanto, Steve considera que
existe uma relação entre jornalismo e verdade. Nas poucas horas
que lhe restam, está disposto a investigar o caso e a demonstrar que
ainda tem "faro" para a notícia.
A rigor, a afirmação contida no
filme é: a TV tudo pode. Uma mentira repetida ali à saciedade torna-se verdade. Isso faz menos parte da
diretriz editorial de tal ou tal rede
do que da própria lógica do veículo. Se existe um morto, tem que haver um culpado. Se há alguém que
parece culpado, esse é o culpado. A
revolta popular por um crime tem
que encontrar uma resposta, e essa
resposta tem de ser a morte de alguém. A verdade não tem nada a
ver com isso.
Daí a execução de Beecham ser,
no filme, um fenômeno onipresente. Está em cada casa, em cada bar
-onde houver uma TV. A morte é
um grande espetáculo nos EUA,
mais ou menos como uma final de
Copa no Brasil. A moral da história, simplificadamente, poderia
ser: quem assiste TV nada vê.
Mas seria pouco para Clint Eastwood, o grande cineasta americano da virada do milênio. Desse fenômeno de cegueira coletiva ele tira consequências radicais. Elas dizem respeito, em certo nível, a essa
sociedade de violência institucional que são os EUA. Elas nos falam
das diversas maneiras como as
pessoas são atingidas por essa violência e se tornam parte dela.
Duas personagens secundárias,
no entanto, chamam particularmente a atenção: a testemunha-chave do crime, que vive para dar
entrevistas, e o capelão do presídio, disposto a extorquir uma confissão do condenado, custe o custar, para melhor dar vazão a sua
vaidade diante das câmeras e das
emissoras de rádio.
O ponto crucial, para Clint, é: como pode uma sociedade sobreviver quando sua base de organização simbólica é de tal maneira frágil ou distorcida?
Basta tomar esse ponto para perceber que Clint é dos um raros cineastas que efetivamente indagam
o futuro nessa virada de século e
questionam os crimes do presente
não como imperfeições naturais
do homem, mas como peças de um
desastre iminente e, talvez, já inevitável.
Daí, não ser estranha a opção de
"Crime Verdadeiro" por uma
construção arcaica. A montagem
paralela -remetendo ora à prisão,
ora à ação do jornalista- é uma
espécie de demonstração rígida do
cinema mais clássico. Como se, abdicando de todas as conquistas
posteriores, Clint optasse por uma
forma voluntariamente antiquada
para fazer, em 99, um filme à moda
dos que fazia Griffith em 19.
Pela mesma razão, é ao jornalismo -hoje um primo pobre no
universo da mídia- que recorre
para tentar a impor a verdade.
Também isso dá um sabor arcaico
a "Crime Verdadeiro": a imprensa
retoma o fio que a justificou, sempre, o de crença na verdade e na hipótese de sua revelação.
Vale insistir, esse é apenas um aspecto, embora decisivo, de um filme tão rico quanto "Os Imperdoáveis", que marcou tão profundamente o início desta década. O
Clint de hoje continua pessimista,
moralista, convicto de que a morte
governa os vivos -é sua única esperança, de certa forma- e disposto a mostrar um mundo atritivo e contraditório.
Para resumir: um cineasta tão
magistral quanto marginal em um
mundo que cada vez mais olha a
TV para não correr o risco de ver.
Avaliação:
Filme: Crime Verdadeiro
Produção: EUA, 1999
Direção: Clint Eastwood
Com: Clint Eastwood, James Woods
Quando: a partir de hoje, nos cines
Eldorado 3, Gazetinha e circuito
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