São Paulo, Sexta-feira, 07 de Maio de 1999
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CINEMA - "CRIME VERDADEIRO"
Para o cineasta, o crime verdadeiro é a televisão

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

São tantos os aspectos a observar em "Crime Verdadeiro" que mais vale isolar um deles, à primeira vista contingente, que é a função da TV na vida contemporânea.
O novo filme de Clint Eastwood tem dois pólos. Num, está Frank Beechum, um presidiário negro, no dia de sua execução. No outro, o veterano repórter Steve Everett, cínico, frustrado e mulherengo. Tendo herdado a missão de entrevistar Beechum, ele chega à conclusão de que a culpabilidade do condenado não está estabelecida.
O desimportante "Oakland Tribune" quer dele uma reportagem "humana": como se sente o condenado no dia da morte, se está arrependido, essas coisas. Algo não muito diferente do que faz a TV, em suma. A TV não faz senão martelar o óbvio cretinizante: declarações deste ou daquele, detalhes sobre a execução, entrevista com a testemunha do crime etc. etc.
À parte o cinismo transbordante, no entanto, Steve considera que existe uma relação entre jornalismo e verdade. Nas poucas horas que lhe restam, está disposto a investigar o caso e a demonstrar que ainda tem "faro" para a notícia.
A rigor, a afirmação contida no filme é: a TV tudo pode. Uma mentira repetida ali à saciedade torna-se verdade. Isso faz menos parte da diretriz editorial de tal ou tal rede do que da própria lógica do veículo. Se existe um morto, tem que haver um culpado. Se há alguém que parece culpado, esse é o culpado. A revolta popular por um crime tem que encontrar uma resposta, e essa resposta tem de ser a morte de alguém. A verdade não tem nada a ver com isso.
Daí a execução de Beecham ser, no filme, um fenômeno onipresente. Está em cada casa, em cada bar -onde houver uma TV. A morte é um grande espetáculo nos EUA, mais ou menos como uma final de Copa no Brasil. A moral da história, simplificadamente, poderia ser: quem assiste TV nada vê.
Mas seria pouco para Clint Eastwood, o grande cineasta americano da virada do milênio. Desse fenômeno de cegueira coletiva ele tira consequências radicais. Elas dizem respeito, em certo nível, a essa sociedade de violência institucional que são os EUA. Elas nos falam das diversas maneiras como as pessoas são atingidas por essa violência e se tornam parte dela.
Duas personagens secundárias, no entanto, chamam particularmente a atenção: a testemunha-chave do crime, que vive para dar entrevistas, e o capelão do presídio, disposto a extorquir uma confissão do condenado, custe o custar, para melhor dar vazão a sua vaidade diante das câmeras e das emissoras de rádio.
O ponto crucial, para Clint, é: como pode uma sociedade sobreviver quando sua base de organização simbólica é de tal maneira frágil ou distorcida?
Basta tomar esse ponto para perceber que Clint é dos um raros cineastas que efetivamente indagam o futuro nessa virada de século e questionam os crimes do presente não como imperfeições naturais do homem, mas como peças de um desastre iminente e, talvez, já inevitável.
Daí, não ser estranha a opção de "Crime Verdadeiro" por uma construção arcaica. A montagem paralela -remetendo ora à prisão, ora à ação do jornalista- é uma espécie de demonstração rígida do cinema mais clássico. Como se, abdicando de todas as conquistas posteriores, Clint optasse por uma forma voluntariamente antiquada para fazer, em 99, um filme à moda dos que fazia Griffith em 19.
Pela mesma razão, é ao jornalismo -hoje um primo pobre no universo da mídia- que recorre para tentar a impor a verdade. Também isso dá um sabor arcaico a "Crime Verdadeiro": a imprensa retoma o fio que a justificou, sempre, o de crença na verdade e na hipótese de sua revelação.
Vale insistir, esse é apenas um aspecto, embora decisivo, de um filme tão rico quanto "Os Imperdoáveis", que marcou tão profundamente o início desta década. O Clint de hoje continua pessimista, moralista, convicto de que a morte governa os vivos -é sua única esperança, de certa forma- e disposto a mostrar um mundo atritivo e contraditório.
Para resumir: um cineasta tão magistral quanto marginal em um mundo que cada vez mais olha a TV para não correr o risco de ver.


Avaliação:


Filme: Crime Verdadeiro Produção: EUA, 1999
Direção: Clint Eastwood Com: Clint Eastwood, James Woods Quando: a partir de hoje, nos cines Eldorado 3, Gazetinha e circuito



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