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CARLOS HEITOR CONY
Receita da amante ideal
Do ponto de vista poético, jamais saberia definir a amante ideal, nem sequer a namoradinha descompromissada, da qual Pablo Neruda e Vinicius de Moraes, cada um a seu modo, cantaram o gesto, a graça e a glória. Tampouco saberia produzir
um ensaio moral (ou amoral) sobre a dita amante -e tremo em
pensar que jamais haverá a amante ideal, pelo menos como a
desejamos.
Mas há. Ao longo de alguns anos no exercício do duro ofício de homem, cruzei e descruzei com mulheres, amantes umas, amadas outras -todas deram problemas, espantos e triunfos. No calor do momento, todas pareciam únicas, primeiras e eternas, o que é uma banalidade da carne, da nossa carne e do nosso espírito.
Cada qual tem seu gosto, sua cólera, seu roteiro de prazer e dor.
Como Siegfried, que, para se
tornar imortal, banhou-se no
sangue do dragão, mas uma folha
caiu em suas costas e este ponto ficou vulnerável ao dardo mortal,
mulher é um Siegfried andrógino;
todas têm um ponto oculto, vulnerável, decisivo.
Mas a amante ideal existe. Pelas leis do mundo, que costumam
ser cruéis para homens e mulheres, é possível que, no rolar das pedras, a cada homem caiba apenas
uma única amante ideal, por
mais que sua experiência e fome
sejam extensas e fundas. Ela não
será bela, necessariamente, pois a
beleza jamais será fundamental.
Ela será gostosa -não no sentido grosseiro da boazuda, mas feita ao ""gosto" de nossos sentidos e
apetites. Terá em síntese, às vezes
de forma incompleta, tudo o que
procuramos e perdemos em outras mulheres. Será honesta, mas
não muito, o suficiente para,
quando nos trair, deixar bem claro, a nós e ao outro, que o dono, o
deus e o escravo delas continua o
mesmo, ou seja, nós.
Voltará sempre e sempre perdoará até mesmo as nossas cachorradas. Será um pouco masoquista e em silêncio assumirá a
sua condição de amante ideal,
pagando o preço de tudo, mas jamais esquecendo as injúrias, não
as graves, que jamais serão esquecidas, mas as banais, que juntas
farão em sua carne uma mistura
de raiva e desejo, fome a nos devorar com a pérfida boca da vingança -e, aí sim, ela encontrará
sabedoria e calma para esperar.
A amante ideal terá, mais ou
menos, de oito a 12 anos menos
que o seu amo e senhor. Nem
muito moça para os desvios do
gosto e do jeito nem muito velha
para lembrar -a nós homens-
as mulheres que não deram certo.
Pois a amante ideal sempre dará
certo.
Um dia, descobriremos que a
desejamos espantosamente, de 15
em 15 dias, de mês em mês, até
que o tempo passou, 15 anos ou
mais, e ela sobreviveu, com sua
força e sua tenacidade às duas ou
três mulheres que durante o período passaram pelas nossas vidas, deixando escombros em nossa carne e no orgulho dela. Com o
tempo, a amante ideal falará dessas mulheres em tom neutro, poderá repetir em causa própria o
velho ditado machista segundo o
qual o que é do homem o bicho
não come.
A amante ideal sabe que tem a
sua hora e vez. E espera. Saber esperar é o diferencial que torna a
mulher verdadeiramente ideal,
pois as outras mulheres nunca esperam, ao contrário, desesperam-se e partem para cobranças abomináveis, alusões torpes, reivindicações mesquinhas. Quanto mais
amaram ou pensaram que amaram, mais se tornam abomináveis nas cobranças e mesquinhas
nas vinganças todas.
Ela mesma já está resignada a
ser amante ideal, e nada pede,
nada reclama. É paciente, humilde e laboriosa. Conhece nossas
fraquezas, nossos medos, nossas
misérias. Sobretudo nossas misérias. É a única que observa, com
neutralidade: ""Você hoje está
muito abatido". As outras mulheres, quando pronunciam essa
mesmíssima frase, estão sendo
oblíquas, na verdade estão insinuando que gastamos nossas
energias com outras.
A amante ideal terá sempre na
bolsa o lencinho de papel que limpará nosso rosto do batom
-mesmo quando o batom for de
outra mulher. E quando estivermos tristes, mas tristes de não ter
jeito, ela não perguntará por que
e ficará triste também, só que sabendo porque ficou triste de repente.
Ventos, tufões, ventanias, coriscos, terremotos, convulsões da terra, da carne e da alma, tudo o que
varre e destrói o homem tem na
amante ideal o sismógrafo que registra a catástrofe. Ela se considera dotada de um sentido especial
para prever essas confusões, mas
ela está, a amante ideal, pronta
para dizer: ""Já passou". Ou o melhor: ""Eu estou aqui!". Em certo
sentido, nós somos um Jesus Cristo e a mulher é o nosso Roberto
Carlos sempre à disposição.
Mas a amante ideal é sobretudo
a mulher que não precisamos
compreender, pois ela se compreende por nós e por ela. É como
as coisas que sempre temos e nunca sabemos que temos. Não se esgota nunca e, quando nos surpreende fatigados, exaustos de
outros fracassos, ela ali está,
pronta, lúcida o bastante para saber cobrar a sua hora e nos ensinar o orgulho de a termos com a humildade que só ela nos pode dar.
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