|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Skármeta busca na realidade o colorido para seus personagens
FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Talvez à exceção dos autores
de ficção científica, é comum
que a literatura se volte para o
universo de quem a produz. A
comprovação dessa assertiva varia de proporção; na prosa do chileno Antonio Skármeta, ela se
mostra elevada.
Desde "Soñé que la Nieve Ardia" (1975), a novelística de Skármeta tem se alimentado da mescla entre a história recente do Chile -em especial, o golpe contra
Salvador Allende em 1973- e as
experiências pessoais, ainda que
não num tom memorialístico,
com destaque para os acontecimentos após o exílio do escritor
na Alemanha, por conta do mesmo fato político.
Em seu romance mais recente,
que chega ao Brasil neste mês, a
mistura se torna mais pessoal e
muito notável.
Mais pessoal porque "A Garota
do Trombone" (2001) faz chegar
ao Chile a saga (iniciada na Europa em "A Boda do Poeta", de
1999) que alude à trajetória da família do autor desde a Dalmácia,
na ex-Iugoslávia, até o porto de
Antofagasta, onde nasceria, em
1940, Esteban Antonio Skármeta
Branicic.
Mais notável porque, se a futura
trilogia -um novo romance é esperado para breve- não tem no
nível da trama semelhança total
com a realidade, é nela que busca
elementos para dar colorido a
seus personagens.
Magdalena, a protagonista desse segundo romance "malício"
-Gema, na Costa da Malícia, é de
onde vêm os personagens-, tem
o nome da mãe de Skármeta e
muito do próprio.
A menina -dois anos mais nova que o escritor- chega a Antofagasta em 1944, levada por um
estranho "anjo da guarda", um
trombonista, que, sem nem se
apresentar, anuncia solenemente:
"Glenn Miller morreu".
A frase enigmática pode ser entendida como uma espécie de senha, resumindo as várias camadas de leitura do livro.
Ela nos diz: esse é um romance
que homenageia a resistência dos
aliados que Glenn Miller animava
na luta contra os nazistas na Segunda Guerra. Resistência da menina, que todo o tempo força seu
caminho contra o que seria esperado. Resistência do próprio Chile, em sua busca pela democracia.
É um livro que evoca o período
em que os americanos ainda eram
os heróis de boa parte do mundo
ocidental. Não só por terem combatido no lado "certo" da trincheira, mas também por produzirem os valores culturais que então
começavam a se espalhar, seguindo o rastro de pólvora dessa mesma guerra. Valores que animaram a adolescência do autor e que
são revividos nos gostos da menina, herdados de seu criador.
E é, sobretudo, um romance escrito por alguém de origens estrangeiras, na voz de alguém de
origens estrangeiras: a resistente,
americanófila e migrante Magdalena. Vivendo no tempo que viu
crescer o próprio Skármeta, ela
assina o livro dentro do livro, em
que conta a sua história.
A história: sem pai nem mãe,
mas supostamente neta de Alia
Emar, a protagonista feminina de
"A Boda do Poeta", Magdalena é
consignada pelo misterioso músico diretamente no armazém de
Esteban Coppeta.
A visita surpreendente corta
mais um dia que o homem gastava na espera infrutífera de sua
amada, de quem fora definitivamente separado ainda na outra
guerra mundial -a amada, o leitor já deve ter adivinhado, é Alia
Emar.
É o amor de Esteban que lhe
rende um inesperado (e improvável) laço familiar com Magdalena:
ele seria seu avô. Não há provas
para o parentesco, porém não importa: sozinhos, menina e homem
aceitam prontamente o elo que
lhes é oferecido.
Skármeta não dá a seus personagens muito tempo para se acostumar à rotina. A segunda grande
reviravolta do romance acontece
já em Santiago.
Diante da morte de Esteban,
Magdalena se vê novamente lançada ao desarraigo. E assume a
missão de cumprir o destino que
ela acredita ter sido "roubado" ao
avô: chegar a Nova York, onde ele
acreditava que poderia ter enriquecido. Tocar a emblemática figura do Empire State Building
-"o prédio mais alto do mundo", como repetia Esteban; o cenário de seu filme preferido,
"King Kong"; e, mais que tudo, o
símbolo da vida que o velho gostaria de ter tido.
Buscando um talismã e homenageando suas origens nebulosas,
Magdalena se rebatiza Alia Emar
Coppeta. Seu caminho, no entanto, vai menos em direção dos
EUA que do próprio Chile.
Aos poucos, a terra que a acolheu se imiscui nos objetivos da
garota do trombone, por meio de
ícones de sua história recente, como os poetas Gabriela Mistral e
Pablo Neruda e o então candidato
à Presidência Salvador Allende.
Usando as aventuras de Magdalena/Alia Emar, Skármeta nos fala
de como as surpresas do cotidiano podem desviar até o caminho
mais obsessivamente traçado e levar uma inequívoca alma de migrante a fincar raízes numa pátria
que não escolheu. É pena, contudo, que nem sempre o resultado
esteja à altura do belo tema que o
inspira.
Avaliação:
Texto Anterior: Inéditos: Alma de migrante Próximo Texto: Walter Salles: Hideo Nakata e o novo cinema de terror japonês Índice
|