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BERNARDO CARVALHO
Quinze anos
Ouvi outro dia o seguinte
diálogo no vestiário de uma
academia de ginástica:
A: As grandes empresas vão
acabar com todas as pequenas.
B: Isso significa a extinção da
espécie humana?
A: De jeito nenhum! Você tem
que ler esse livro. A minha religião diz outra coisa.
B: O que você acha que vem depois da morte?
A: Hum...
B: Pra mim, vem uma coisa melhor. Uma coisa boa.
A: Pra mim, também.
B: Meu, os suicidas estão fodidos!
A: É verdade.
B: E isso é unanimidade entre
todas as religiões.
A: Menos para os muçulmanos.
Tive que sair de perto para não
rir. No seu absurdo e na sua idiotice simpática, a conversa parecia
uma versão do Casseta e Planeta
para os "Diálogos" entre Jorge
Luis Borges (1899-1986) e Ernesto
Sabato, 94, organizados nos anos
70 pelo jornalista Orlando Barone e agora publicados no Brasil
pela editora Globo.
No livro, os dois escritores argentinos também falam, entre
outras coisas, de religião, do que
vem depois da morte e dos suicidas. Sabato, propenso ao suicídio
na juventude, não diz exatamente que "os suicidas estão fodidos",
mas que "não é de estranhar que
o condenem [o suicídio] todas as
religiões superiores". E Borges faz
a ressalva: são os budistas -e
não os muçulmanos- os únicos
a não condená-lo.
No fluxo aleatório desses diálogos pontuados pelos comentários
nem sempre indispensáveis do organizador, o tema do suicídio
surge logo depois de um ataque
veemente ao naturalismo, por Ernesto Sabato: "De todas as formas
de contar, a mais falsa é a naturalista".
A condenação é retomada mais
adiante por Borges, com uma
afirmação um tanto generalizadora: "A Argentina neste momento (1975) é um dos países onde se
faz a melhor literatura fantástica.
Em outros lugares da América, o
que se escreve são romances de
costumes ou arrazoados sociais,
mas romances de pura imaginação acredito que se dão quase que
exclusivamente aqui ou talvez no
México. (...) Que história é essa de
realidade? Qual á a realidade? E o
sonho, não é realidade? (...) Uma
pessoa que sonha é ao mesmo
tempo o teatro, o ator, o autor e o
cenário".
Tão implacável quanto a reação ao naturalismo, previsível da
parte de escritores como Sabato e
Borges ("a literatura não é menos
real do que aquilo que se chama
realidade"), é o ataque que ambos fazem a um outro clichê, em
geral menos vilipendiado, embora continue a criar, no pólo oposto, tantos equívocos quanto o naturalismo, e mesmo entre pessoas
relativamente informadas.
Há alguns meses, uma amiga
psicanalista me ligou para falar
de um trabalho que estava pensando em desenvolver sobre os
loucos e a literatura. Para ela,
correspondendo a um certo truísmo, a "literatura de verdade" era
a que inventava uma nova linguagem. Ela queria mostrar que
era isso também o que fazia a loucura, só que inconscientemente,
ao se opor à linguagem normalizada da comunicação e do dia-a-dia. Achei interessante. Tentei entender o que ela queria dizer com
"criação de uma nova linguagem". Pedi um exemplo e é lógico
que ela me falou imediatamente
de Guimarães Rosa.
Sendo Guimarães Rosa uma
unanimidade entre nós dois, tentei argumentar que toda "literatura de verdade" cria uma nova
linguagem, sem que isso necessariamente salte aos olhos como no
caso do autor de "Grande Sertão:
Veredas". Eu dizia: "O princípio
de toda literatura é estabelecer
uma nova relação com a realidade, e portanto uma nova linguagem. Se não, não é literatura". E
minha amiga ficava cada vez
mais cética e desconfiada. Era como se, na minha pobreza de argumentação, eu tentasse defender e
justificar a banalidade à qual eu
estava condenado como escritor,
contra a genialidade evidente (e
incontestável para nós dois) de
Guimarães Rosa.
Sabato e Borges também falam
disso. "Seria preciso ver o que se
entende por revoluções de linguagem. Suponho que não sejam essas supressões de pontos, vírgulas
e minúsculas que estão ao alcance
de qualquer criança. (...) Tampouco os deslocamentos de palavras ou de sintaxe. Aí está o
exemplo de Kafka: com uma prosa transparente e tradicional, deu
uma visão revolucionariamente
nova da realidade", diz Sabato.
Borges conta uma experiência
de juventude: "Uma vez eu li um
conto de Kafka em uma revista
expressionista cujo nome esqueci.
Eu me disse que era estranho que
tivessem publicado algo tão sem
graça e trivial exatamente em
uma revista feita de extravagâncias e neologismos. Claro, depois
eu percebi: o conto era infinitamente mais complexo do que os
jogos verbais dos outros. Claro, eu
tinha 15 anos e acredito que agora não cometeria esse erro. Alguma coisa devo ter aprendido...".
Assim como o naturalismo volta e meia reaparece como uma
forma "mais verdadeira" de literatura, também é reincidente o
erro de quem toma o simples neologismo e os trocadilhos, por mais
publicitários ou ginasianos, como
sinônimos de invenção de linguagem, confundindo epígonos com
mestres. A diferença em relação a
Borges é que são erros cometidos
por quem já não tem 15 anos.
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