São Paulo, terça-feira, 07 de junho de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Quinze anos

Ouvi outro dia o seguinte diálogo no vestiário de uma academia de ginástica:
A: As grandes empresas vão acabar com todas as pequenas.
B: Isso significa a extinção da espécie humana?
A: De jeito nenhum! Você tem que ler esse livro. A minha religião diz outra coisa.
B: O que você acha que vem depois da morte?
A: Hum...
B: Pra mim, vem uma coisa melhor. Uma coisa boa.
A: Pra mim, também.
B: Meu, os suicidas estão fodidos!
A: É verdade.
B: E isso é unanimidade entre todas as religiões.
A: Menos para os muçulmanos.
Tive que sair de perto para não rir. No seu absurdo e na sua idiotice simpática, a conversa parecia uma versão do Casseta e Planeta para os "Diálogos" entre Jorge Luis Borges (1899-1986) e Ernesto Sabato, 94, organizados nos anos 70 pelo jornalista Orlando Barone e agora publicados no Brasil pela editora Globo.
No livro, os dois escritores argentinos também falam, entre outras coisas, de religião, do que vem depois da morte e dos suicidas. Sabato, propenso ao suicídio na juventude, não diz exatamente que "os suicidas estão fodidos", mas que "não é de estranhar que o condenem [o suicídio] todas as religiões superiores". E Borges faz a ressalva: são os budistas -e não os muçulmanos- os únicos a não condená-lo.
No fluxo aleatório desses diálogos pontuados pelos comentários nem sempre indispensáveis do organizador, o tema do suicídio surge logo depois de um ataque veemente ao naturalismo, por Ernesto Sabato: "De todas as formas de contar, a mais falsa é a naturalista".
A condenação é retomada mais adiante por Borges, com uma afirmação um tanto generalizadora: "A Argentina neste momento (1975) é um dos países onde se faz a melhor literatura fantástica. Em outros lugares da América, o que se escreve são romances de costumes ou arrazoados sociais, mas romances de pura imaginação acredito que se dão quase que exclusivamente aqui ou talvez no México. (...) Que história é essa de realidade? Qual á a realidade? E o sonho, não é realidade? (...) Uma pessoa que sonha é ao mesmo tempo o teatro, o ator, o autor e o cenário".
Tão implacável quanto a reação ao naturalismo, previsível da parte de escritores como Sabato e Borges ("a literatura não é menos real do que aquilo que se chama realidade"), é o ataque que ambos fazem a um outro clichê, em geral menos vilipendiado, embora continue a criar, no pólo oposto, tantos equívocos quanto o naturalismo, e mesmo entre pessoas relativamente informadas.
Há alguns meses, uma amiga psicanalista me ligou para falar de um trabalho que estava pensando em desenvolver sobre os loucos e a literatura. Para ela, correspondendo a um certo truísmo, a "literatura de verdade" era a que inventava uma nova linguagem. Ela queria mostrar que era isso também o que fazia a loucura, só que inconscientemente, ao se opor à linguagem normalizada da comunicação e do dia-a-dia. Achei interessante. Tentei entender o que ela queria dizer com "criação de uma nova linguagem". Pedi um exemplo e é lógico que ela me falou imediatamente de Guimarães Rosa.
Sendo Guimarães Rosa uma unanimidade entre nós dois, tentei argumentar que toda "literatura de verdade" cria uma nova linguagem, sem que isso necessariamente salte aos olhos como no caso do autor de "Grande Sertão: Veredas". Eu dizia: "O princípio de toda literatura é estabelecer uma nova relação com a realidade, e portanto uma nova linguagem. Se não, não é literatura". E minha amiga ficava cada vez mais cética e desconfiada. Era como se, na minha pobreza de argumentação, eu tentasse defender e justificar a banalidade à qual eu estava condenado como escritor, contra a genialidade evidente (e incontestável para nós dois) de Guimarães Rosa.
Sabato e Borges também falam disso. "Seria preciso ver o que se entende por revoluções de linguagem. Suponho que não sejam essas supressões de pontos, vírgulas e minúsculas que estão ao alcance de qualquer criança. (...) Tampouco os deslocamentos de palavras ou de sintaxe. Aí está o exemplo de Kafka: com uma prosa transparente e tradicional, deu uma visão revolucionariamente nova da realidade", diz Sabato.
Borges conta uma experiência de juventude: "Uma vez eu li um conto de Kafka em uma revista expressionista cujo nome esqueci. Eu me disse que era estranho que tivessem publicado algo tão sem graça e trivial exatamente em uma revista feita de extravagâncias e neologismos. Claro, depois eu percebi: o conto era infinitamente mais complexo do que os jogos verbais dos outros. Claro, eu tinha 15 anos e acredito que agora não cometeria esse erro. Alguma coisa devo ter aprendido...".
Assim como o naturalismo volta e meia reaparece como uma forma "mais verdadeira" de literatura, também é reincidente o erro de quem toma o simples neologismo e os trocadilhos, por mais publicitários ou ginasianos, como sinônimos de invenção de linguagem, confundindo epígonos com mestres. A diferença em relação a Borges é que são erros cometidos por quem já não tem 15 anos.


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