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CONTARDO CALLIGARIS
Roberto Jefferson e a "Guerra dos Mundos"
Na coluna da semana passada, disse que os discursos
politicamente incorretos são
aqueles que tratam seus ouvintes
como menores ou como idiotas.
Aparentemente, esses discursos
são também uma estratégia política fadada ao fracasso.
Roberto Jefferson está com a palavra, constantemente, desde sua
primeira entrevista a Renata Lo
Prete (Folha, 6 de junho). Claro,
podemos nos perguntar se há provas de tudo o que ele avança e podemos detestar seu passado
"collorido". Mas não paramos de
escutá-lo. Por quê? Acontece que
ele é o único que parece nos tratar
como gente grande.
Os que são objeto de suas acusações travam uma luta diária, feita de desculpas, evocações de passados gloriosos e declarações de
justas intenções. Eles não têm nenhuma chance de ganhar a batalha. Roberto Jefferson fala mais
alto porque ele não faz apelo ao
nosso entusiasmo, à nossa fidelidade a grandes convicções ou à
nossa suposta grandeza moral.
Sua atitude não é a de quem propõe um ideal ou se propõe como
ideal (sempre improvável) para
as crianças. Ele não pretende estar acima da gente, pois sua autoridade vem de suas manchas.
Tampouco ele nos interpela como
se fôssemos muito melhores do
que realmente somos. Ele nos fala, por assim dizer, de adulto para
adulto.
Triunfo do cinismo? Não exatamente. As razões do sucesso de
Roberto Jefferson são as mesmas
que fazem o charme do filme
"Guerra dos Mundos", em suas
duas versões, a de Byron Haskin
(1953) e a de Spielberg, que está
em cartaz.
Vi a primeira aos sete anos, em
55, pois, no cinema que freqüentava, os filmes chegavam tarde.
Ficaram, na minha memória, os
periscópios dos extraterrestres
(que me valeram, na época, algumas noites insones) e uma sensação final de otimismo, tanto mais
estranha que, no começo dos anos
50, minha cidade (Milão) se parecia com as ruínas produzidas pela
invasão dos marcianos. Nestes
dias, revi o filme de 53 e experimentei a mesma sensação sem saber bem por quê.
Logo, assistindo ao filme de
Spielberg, que me produziu um
efeito parecido, entendi a razão
de meu otimismo. No filme de 53,
os humanos, bem prosaicos,
acham uma boa idéia instalar
um quiosque de hambúrgueres
ou sorvetes ao lado do objeto misterioso que acaba de cair do céu.
No filme de Spielberg, o protagonista é um pai adolescente atrasado, irresponsável e egoísta. Em
ambos os casos, os humanos, perseguidos e acuados, revelam-se
capazes do pior: saques e vale-tudo para salvar a pele. Em ambos
os casos, nossas armas não chegam a amassar a carroçaria dos
extraterrestres, que nos exterminam tranqüila e metodicamente.
E não aparece nenhum super-herói, nenhum presidente piloto de
caça, à la "Independence Day".
Não quero estragar o prazer de
quem planeja ver o filme, mas, em
resumo, a conclusão é esta: os humanos não são salvos pela sua
força nem pela sua inteligência
nem pela duvidosa nobreza de
seu caráter. O que salva o planeta
e a gente é nossa sujeira.
Ambos os filmes poderiam terminar com um aviso aos invasores, canibais, vampiros e outros:
cuidado, os humanos são fracos,
mas eles são indigestos. Na hora
de morder, desconfie de gambás e
porcos-espinhos.
Comentando comigo o filme de
Spielberg, um adolescente brincou: por que os extraterrestres estão sempre pelados? Se são mais
avançados que a gente, como é
que ainda não inventaram calças
e saias? Respondi-lhe o seguinte: é
por isso mesmo que eles são mais
"avançados" que a gente. Se nossa ciência é capenga e não consegue produzir viagens interestelares, escudos magnéticos e raios letais, talvez seja porque nosso pensamento é parasitado por desejos
reprimidos, sentimentos de culpa,
inibições, preocupações com a
opinião dos outros, brigas de casais e outras ninharias que nos levam, por exemplo, a cobrir algumas partes do corpo. Nossa civilização é uma vasta neurose, sem a
qual, sem dúvida, seríamos muito
mais racionais e eficientes.
Num tom mais sério, meu jovem interlocutor notou também
que os extraterrestres da "Guerra
dos Mundos" nos exterminam
sem nenhum problema de consciência. Se os papéis fossem invertidos, muitos de nós se inibiriam
na hora de massacrar, pois reconheceriam no corpo esverdeado
dos estrangeiros não uma rã, mas
um semelhante. Afinal, se as baleias e os golfinhos são dos nossos,
por que não os marcianos? Com
isso, meu interlocutor começou a
pensar que a neurose que atrapalha nossa razão e produz nosso
"subdesenvolvimento" talvez tenha lá seus aspectos positivos.
Alguns estranharam que Spielberg retomasse uma história que
parece afastada de seu humanismo habitual. Nada disso: o enredo de "Guerra dos Mundos" dá
prova de um humanismo exacerbado, embora propriamente pós-moderno; não celebra a excelência, o gênio e os músculos idealizados de nossa espécie, mas sugere que nossa força está em nossas
misérias reais: bicho ruim não
morre fácil.
Da mesma forma, Roberto Jefferson (ai do extraterrestre que
tentasse comê-lo) é um personagem pós-moderno. Como acontece com os humanos da "Guerra dos Mundos", sua força é sua imperfeição.
@ - ccalligari@uol.com.br
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