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MARCELO COELHO
"Bundas", o "Pasquim" da era FHC
Muita gente achava que era só
uma piada de Ziraldo quando ele
anunciava sua intenção de fazer
uma revista chamada "Bundas"
para se contrapor a "Caras". Mas
a revista foi feita, já está em seu
quarto número e é um sucesso.
Trinta anos depois do aparecimento do "Pasquim", lá estão de
novo Millôr, Jaguar, Ziraldo, Sérgio Augusto, Fausto Wolff... Será
possível? Eu tinha algumas dúvidas que desse certo.
Afinal, os tempos são outros.
FHC não é Médici, a esquerda está em crise, o discurso oposicionista não cola, a globalização veio
para ficar, o Muro de Berlim caiu
etc. "Bundas" não seria uma coisa
de dinossauros?
Não é bem assim. Desde a crise
cambial de janeiro, pelo menos, e
principalmente devido ao desgaste do segundo mandato de FHC, o
discurso modernizante, conformista, "pós-utópico", dá mostras
de ir mal das pernas. O que antes
parecia coisa de esquerdista ranheta -como criticar as privatizações, por exemplo- readquire
credibilidade.
Basta ver as trapalhadas da Telefônica; basta lembrar os grampos do BNDES; basta, sobretudo,
ler o livro de Aloysio Biondi, "O
Brasil Privatizado" (editora Fundação Perseu Abramo). Biondi
faz as contas, com dados do próprio governo, e chega à conclusão
de que o dinheiro arrecadado no
processo de privatização (R$ 85,2
bilhões) é menos do que o país
gastou ou deixou de arrecadar
(R$ 87,6 bilhões). O patrimônio
público foi simplesmente torrado.
Como não sou economista, tendo a ficar desnorteado em debates
sobre o assunto. Sempre há alguém para explicar o que parece
escândalo evidente, sempre há
quem refaça as contas e prove (?)
exatamente o contrário do que dizem os críticos.
O espantoso, no caso do livro de
Biondi, é que não houve até agora
o coro de refutações que seria de
esperar. O que está acontecendo?
Talvez a segurança neoliberal, a
hegemonia ideológica bem-falante do primeiro mandato de FHC,
esteja dando lugar a uma vasta
"operação abafa" que não se aplica apenas a um ou outro escândalo isolado.
É sintomático de um certo cansaço do poder federal o fato de
reagir a denúncias dizendo que
são "café requentado". Parece
que, neste novo mandato, não vale mais a pena tentar convencer
ninguém.
Seja por inércia, seja por abafamento, seja porque a reeleição ossificou a atual estrutura de poder,
seja porque a oposição está ainda
tateando na busca de uma alternativa eleitoral, o fato é que o espaço público, o âmbito do debate
político, parece cindido no país.
É como se houvesse duas correntes de opinião, uma pró-FHC, outra contra, que não se confrontam
diretamente. Mesmo na Folha,
onde o pluralismo é ponto de hon-ra, cada opinião, cada articulista
ocupa como que um nicho, com
seu próprio público; as coisas não
se fundem nem se chocam.
De modo geral, entretanto, o
oposicionismo ainda vive numa
espécie de semiclandestinidade,
sem que para isso o poder precise
de atos institucionais e órgãos de
repressão.
É essa a razão que encontro para o sucesso de "Bundas" e para o
surgimento do que poderia ser
chamado de uma nova imprensa
alternativa, ou "nanica", como se
dizia nos anos 70, na qual se incluem "Caros Amigos" ou "Página Central".
A despeito do colorido esfuziante, das ilustrações virtuosísticas de
Paulo Caruso e Aroeira, do papel
brilhante e do formato de revista,
"Bundas" é uma publicação parecidíssima com o antigo "Pasquim". Cito as semelhanças menos óbvias.
Muitos textos, por exemplo, não
são simplesmente coloquiais (a
coloquialidade, por si só, não foi
invenção do "Pasquim"), mas
produzem no leitor o efeito de ter
entrado no meio, não no início de
uma conversa. O sentido, o propósito do artigo só se esclarece no segundo ou terceiro parágrafo. Nisso o "Pasquim" era moderníssimo: tinha a coloquialidade de
uma conversa de bar em que o
tom da voz é meio gritado, não a
de uma prosa serena ao pé da lareira.
"Bundas" recupera esse achado.
A auto-referência, para não dizer
a auto-exaltação irônica, fortíssima no "Pasquim" a ponto de relar
no cifrado e no paroquial, também reaparece. O deboche atinge
alguns momentos de "vale-tudo"
humorístico (a piada não é boa,
mas vai mesmo assim), como se, a
exemplo do que ocorria nos anos
70, fosse importante lutar contra
toda censura, inclusive a própria.
Essas características são, no fundo, típicas de uma época repressiva. O subentendido, o deboche
(como talvez todo humor), dirige-se aos convertidos, àqueles a
quem nada precisamos explicar,
já que estamos impedidos de convencer os demais. O tom gritado,
por sua vez, é o de quem não costuma ser ouvido.
Já o recurso ao sexo e ao palavrão, que nos anos 70 tinha uma
conotação liberadora, assume um
significado bem diverso: tende a
cenas de machismo explícito ou
ao apelo mercadológico. Isso, até
por reação ao politicamente correto, aconteceu em toda parte. Foi
uma mudança.
Mas pensando em tudo aquilo
que, no Brasil de hoje, se assemelha ao passado, "Bundas" bem
que merece o seu sucesso.
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