São Paulo, Quarta-feira, 07 de Julho de 1999
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MARCELO COELHO
"Bundas", o "Pasquim" da era FHC

Muita gente achava que era só uma piada de Ziraldo quando ele anunciava sua intenção de fazer uma revista chamada "Bundas" para se contrapor a "Caras". Mas a revista foi feita, já está em seu quarto número e é um sucesso.
Trinta anos depois do aparecimento do "Pasquim", lá estão de novo Millôr, Jaguar, Ziraldo, Sérgio Augusto, Fausto Wolff... Será possível? Eu tinha algumas dúvidas que desse certo.
Afinal, os tempos são outros. FHC não é Médici, a esquerda está em crise, o discurso oposicionista não cola, a globalização veio para ficar, o Muro de Berlim caiu etc. "Bundas" não seria uma coisa de dinossauros?
Não é bem assim. Desde a crise cambial de janeiro, pelo menos, e principalmente devido ao desgaste do segundo mandato de FHC, o discurso modernizante, conformista, "pós-utópico", dá mostras de ir mal das pernas. O que antes parecia coisa de esquerdista ranheta -como criticar as privatizações, por exemplo- readquire credibilidade.
Basta ver as trapalhadas da Telefônica; basta lembrar os grampos do BNDES; basta, sobretudo, ler o livro de Aloysio Biondi, "O Brasil Privatizado" (editora Fundação Perseu Abramo). Biondi faz as contas, com dados do próprio governo, e chega à conclusão de que o dinheiro arrecadado no processo de privatização (R$ 85,2 bilhões) é menos do que o país gastou ou deixou de arrecadar (R$ 87,6 bilhões). O patrimônio público foi simplesmente torrado.
Como não sou economista, tendo a ficar desnorteado em debates sobre o assunto. Sempre há alguém para explicar o que parece escândalo evidente, sempre há quem refaça as contas e prove (?) exatamente o contrário do que dizem os críticos.
O espantoso, no caso do livro de Biondi, é que não houve até agora o coro de refutações que seria de esperar. O que está acontecendo?
Talvez a segurança neoliberal, a hegemonia ideológica bem-falante do primeiro mandato de FHC, esteja dando lugar a uma vasta "operação abafa" que não se aplica apenas a um ou outro escândalo isolado.
É sintomático de um certo cansaço do poder federal o fato de reagir a denúncias dizendo que são "café requentado". Parece que, neste novo mandato, não vale mais a pena tentar convencer ninguém.
Seja por inércia, seja por abafamento, seja porque a reeleição ossificou a atual estrutura de poder, seja porque a oposição está ainda tateando na busca de uma alternativa eleitoral, o fato é que o espaço público, o âmbito do debate político, parece cindido no país.
É como se houvesse duas correntes de opinião, uma pró-FHC, outra contra, que não se confrontam diretamente. Mesmo na Folha, onde o pluralismo é ponto de hon-ra, cada opinião, cada articulista ocupa como que um nicho, com seu próprio público; as coisas não se fundem nem se chocam.
De modo geral, entretanto, o oposicionismo ainda vive numa espécie de semiclandestinidade, sem que para isso o poder precise de atos institucionais e órgãos de repressão.
É essa a razão que encontro para o sucesso de "Bundas" e para o surgimento do que poderia ser chamado de uma nova imprensa alternativa, ou "nanica", como se dizia nos anos 70, na qual se incluem "Caros Amigos" ou "Página Central".
A despeito do colorido esfuziante, das ilustrações virtuosísticas de Paulo Caruso e Aroeira, do papel brilhante e do formato de revista, "Bundas" é uma publicação parecidíssima com o antigo "Pasquim". Cito as semelhanças menos óbvias.
Muitos textos, por exemplo, não são simplesmente coloquiais (a coloquialidade, por si só, não foi invenção do "Pasquim"), mas produzem no leitor o efeito de ter entrado no meio, não no início de uma conversa. O sentido, o propósito do artigo só se esclarece no segundo ou terceiro parágrafo. Nisso o "Pasquim" era moderníssimo: tinha a coloquialidade de uma conversa de bar em que o tom da voz é meio gritado, não a de uma prosa serena ao pé da lareira.
"Bundas" recupera esse achado. A auto-referência, para não dizer a auto-exaltação irônica, fortíssima no "Pasquim" a ponto de relar no cifrado e no paroquial, também reaparece. O deboche atinge alguns momentos de "vale-tudo" humorístico (a piada não é boa, mas vai mesmo assim), como se, a exemplo do que ocorria nos anos 70, fosse importante lutar contra toda censura, inclusive a própria.
Essas características são, no fundo, típicas de uma época repressiva. O subentendido, o deboche (como talvez todo humor), dirige-se aos convertidos, àqueles a quem nada precisamos explicar, já que estamos impedidos de convencer os demais. O tom gritado, por sua vez, é o de quem não costuma ser ouvido.
Já o recurso ao sexo e ao palavrão, que nos anos 70 tinha uma conotação liberadora, assume um significado bem diverso: tende a cenas de machismo explícito ou ao apelo mercadológico. Isso, até por reação ao politicamente correto, aconteceu em toda parte. Foi uma mudança.
Mas pensando em tudo aquilo que, no Brasil de hoje, se assemelha ao passado, "Bundas" bem que merece o seu sucesso.


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