São Paulo, sábado, 07 de agosto de 2004

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DRAUZIO VARELLA

Os matadores de terno e gravata

O homem que os jornais apelidaram de "o último chefão" entrou no tribunal de terno de lapela larga e camisa branca de colarinho, sem gravata. Acusado de roubo e de condenar à morte vários membros de sua quadrilha, ergueu a mão direita em saudação aos companheiros mafiosos sentados no banco em sua frente.
Assim Michael Daly descreve para o prestigioso jornal nova-iorquino "Daily News" o primeiro dia do julgamento de Joseph Massino na Corte Federal do Brooklyn.
Em sua coluna, o respeitado jornalista prossegue: "...Esse último Don, envolvido na morte de diversos gângsteres, pode ser considerado quase um homem de bom comportamento quando comparado aos envolvidos num outro caso em julgamento na mesma semana. Enquanto aquele responde a um processo criminal, estes enfrentam a Justiça civil, embora sejam responsáveis pela morte de milhões de pessoas".
Os acusados desse genocídio são as companhias produtoras de cigarros, enquadradas pelo governo americano numa variante civil da lei conhecida como Rico (Racketeer Influenced and Corrupt Act), promulgada em 1970 para dar amparo legal aos processos contra a Máfia.
Baseado nessa lei, no final de maio, um juiz federal abriu um processo para garantir ao governo o direito de recuperar US$ 289 bilhões dos fabricantes de cigarro, conseguidos através de ganhos considerados indevidos, uma vez que o fumo tira a vida de 400 mil americanos por ano. Só para dar uma idéia da indenização pleiteada, lembremos que em 2004 o orçamento integral do Ministério da Saúde brasileiro foi de US$ 12 bilhões, isto é, o juiz americano pede de indenização o equivalente ao que o nosso ministério gastaria em 24 anos.
O juiz alega que os chefões da indústria do cigarro "funcionaram por mais de 45 anos como uma organização criminosa, de fato, para atingir através de meios ilegais o objetivo comum de maximizar seus lucros e evitar as conseqüências de suas ações".
E continua: "Os acusados procuraram por muitos anos enganar o público americano a respeito dos efeitos do fumo sobre a saúde. (...) Repetida e consistentemente negaram que o cigarro provoca dependência, mesmo depois de conhecerem e explorarem intencionalmente as propriedades aditivas da nicotina (...) Repetida e consistentemente afirmaram que não empregavam estratégias mercadológicas especificamente dirigidas para as crianças, enquanto faziam anúncios e utilizavam técnicas de marketing para tornar seus produtos atraentes para elas".
Michael Daly relata que nos autos do processo está documentado um fato pouco conhecido: "Representantes das cinco gigantes produtoras de fumo tiveram um encontro no hotel The Plaza, em Manhattan, no dia 15 de dezembro de 1953, no melhor estilo das comissões das famílias mafiosas. Nele, os chefões do cigarro definiram estratégias para rebater os estudos científicos que ligavam o fumo ao câncer e aos ataques cardíacos. Todos concordaram que as evidências publicadas eram extremamente sérias e mereciam uma ação drástica".
A respeito dessa reunião clandestina, o juiz federal acrescentou no processo: "Os executivos-chefes reunidos no The Plaza concordaram que a estratégia a ser implementada deveria ter efeitos duradouros, portanto requeria que todos agissem em concerto. (...) E, esse acordo mútuo, essa conspiração, continua a existir até hoje".
Os observadores do julgamento dos executivos-chefes das cinco maiores produtoras de cigarro do mundo são unânimes em concordar que suas companhias se encontram em maus lençóis; dificilmente escaparão de uma multa pesadíssima, capaz de abalar a estrutura financeira do setor.
Afinal, lançar mão de métodos escusos para impedir a divulgação das pesquisas científicas que mostram ser o cigarro responsável por um em cada três casos de câncer e a principal causa isolada de infartos do miocárdio, enfisemas, derrames cerebrais, além de outras doenças potencialmente fatais. E ainda ter a desfaçatez de insistir que nicotina não vicia, debochando cinicamente da legião de fumantes que faz de tudo para largar de fumar e não consegue, é um crime muito grave que deve ser punido pela sociedade.
A Justiça dos EUA julga que no país deles esse delito deve ser enquadrado na mesma lei promulgada para punir os crimes da Máfia e que a multa para ressarcir os gastos de saúde efetuados com o tratamento dos que ficaram doentes por causa do cigarro deve ser de US$ 289 bilhões.
E nós, no Brasil, achamos que as multinacionais do fumo não nos devem nada? As mesmas companhias que serão obrigadas a pagar pelo crime continuado cometido contra os americanos, aqui podem fazer o que bem entendem, auferir lucros exorbitantes e mandar a conta dos que caem doentes por causa do cigarro para o SUS? A vida de um cidadão americano por acaso vale mais do que a de um brasileiro?


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