São Paulo, sexta-feira, 07 de agosto de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Mártires, nautas e náufragos


Leituras do Capitão Blood e heranças bucaneiras fazem-me temer um motim

A BORDO do contratorpedeiro "Pará" C27 -""Stamos em pleno mar". De momento, não sei se o verso é de Camões ou Castro Alves, mas, de um ou de outro, o fato é que estou em pleno mar. Um rebocador gorducho empurra-nos do cais para o meio da baía e agora as máquinas do Pará começam a desenvolver não sei quantos nós em direção ao mar alto.
O oficial das relações públicas me explica essa história de nós e eu finjo que entendo. Fico sabendo que o navio é capaz de dar 33 nós, o que é muito nó. E, quando estou aprendendo tão elementar sabedoria, tocam sirenes a bordo, um rebuliço dos diabos.
Leituras do Capitão Blood e vagas heranças bucaneiras no sangue (alma de pirata) fazem-me temer um motim ou um assalto ali mesmo na Ilha Fiscal. Mas não é nada disso. É que o Pará está passando ao lado do Minas Gerais, capitania da esquadra de Tamandaré. O Minas ali está, tão preso às águas que nem parece navio, mas prolongamento do cais, inarredável. E no Minas também há rebuliço e clarins, a função dele, ao ficar parado ali, na rota de todos os navios da esquadra que partem ou que chegam, deve ser esta: receber os cumprimentos e retribuí-los, guarnições formadas lá e cá, sirenes, viva o Brasil.
Mas o Minas fica para trás e o Pará começa a comer mar com apetite. Corta a rota honesta da Cantareira, as lanchonas de Niterói recebem a pesada marola que vamos largando. O oficial das relações públicas convida para visitar o navio.
Vejo as máquinas, os óleos, as provisões de boca humana e de boca de fogo, o Pará tem dois grupos de canhões, cinco em torre, seis sem torre e outros menores para pompa e circunstância de guerra. E as sirenas voltam a tocar, clarins, marinheiros correndo.
-Que que há agora?
-É o sonar.
-Sonar?
-Uma tecnologia que avisa a presença de submarino inimigo.
Tremo em minhas bases:
-Há algum inimigo por aí?
Olho aterrado para o oficial. Subo a uma coisa que a meus olhos profanos parece a torre de comando. E vejo um complicado monstro eletrônico, telas, cartas, agulhas, manômetros e outros troços terminados em "ômetro". É o equipamento do sonar.
Na tela esverdeada surgem sinais parecidos com aquele que fica na televisão quando se desliga o aparelho. Mas o sinal cresce e indica a posição do inimigo. Mas quem é o inimigo?
O encarregado responde que nada pode identificar. A função do sonar é investigar o fundo do oceano com sua visão eletrônica, captar a presença do submarino, localizá-lo, indicar sua velocidade e direção. Em outra torre, já receberam os diagramas do sonar e uma equipe de entendidos trata de traduzi-los e apontá-los no mapa da região. Enquanto isso, toda a tripulação prepara-se para o combate, marinheiros botam máscaras e salva-vidas -um colete cor de abóbora que também me oferecem.
Penso tratar-se de providência simbólica, mas vejo oficiais se amarrando ao salva-vidas como se fossem passar a vida inteira com eles.
Até que chega a tradução da mensagem do sonar. O papel quadrado assinala o ponto do inimigo. E esse papel é encaixado eletronicamente na carta da região. Suspense, respirações sôfregas, o comandante tem olhos acesos. Mas o oficial responsável pela justaposição confere cálculos e anuncia, solene:
-É o rochedo dos Mártires!
A sirene correspondente transmite para todo o navio que não há inimigo algum à vista ou às escondidas. É apenas uma laje e ferro existentes bem à saída da barra e que por um capricho da eletrônica impressiona a tela do sonar como se submarino fosse.
Todo mundo tira o salva-vidas cor de abóbora e eu vou tomar satisfações com o comandante.
-Comandante, sempre que o navio passa por aqui o sonar acusa o rochedo dos Mártires?
-Acusa. É rotina.
-Mas, comandante, quando as galeras portuguesas passaram por aqui já havia esse rochedo dos Mártires fincado na entrada da barra...
-A frota de Cabral não tinha sonar. Eu tenho.
O Pará começa a jogar e evitando botar os bofes para fora, retiro-me para a cabine que me oferecem e vou sonhar com mártires, náufragos e nautas que gemem nos mares do mundo em noites de lua.


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