São Paulo, quinta-feira, 07 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CONTARDO CALLIGARIS

Olimpíada

A partir da semana que vem estarei em Sydney, comentando a Olimpíada. Vou me ausentar desta página para escrever, em dias alternados, no especial olímpico do caderno Esporte e do UOL. Voltarei em outubro.
Os Jogos modernos têm um século quase redondo (as Olimpíadas recomeçaram em 1896, depois de uma interrupção de um milênio e meio). Eles são a expressão do espírito de nossos tempos.
No século que acaba, mais do que nunca, homens e mulheres, às vezes populações inteiras, viajaram, migraram e se transplantaram. Todos, viajantes e hóspedes, tiveram de lidar com diferenças étnicas e culturais extremas e encontrar jeitos de conviver.
O século promulgou assiduamente ideais de tolerância e valoriza hoje o multiculturalismo. Mas, por isso mesmo, também foi um dos séculos que mais sofreu de ódio e intolerância racista -e o que mais praticou genocídios.
A contradição é apenas aparente. Nossa cultura encoraja seus membros a negligenciar as diferenças e a se reconhecerem todos como pertencendo à mesma espécie. Ora, quanto mais esse ideal é propagado e imposto, tanto mais os homens são seduzidos por qualquer diferença que lhes permita isolar os outros como detestáveis e se reconhecerem, portanto, como eleitos e especialmente amáveis.
Quando a idéia da igualdade de todos se torna doutrina dominante, é inevitável que pequenas diferenças sejam invocadas para justificar ódios, segregações e extermínios. Ninguém gosta, ao que parece, de ser simplesmente um entre outros. "Somos todos iguais!", conclamamos em coro. E logo, virando a cabeça, muitos sussurram: "Sim, é mesmo, mas, justamente, há uma pequena diferença que torna esses outros detestáveis".
Nesse paradoxo crucial para o século, as Olimpíadas não são apenas uma encenação de bom-mocismo universalista. Elas propõem uma solução. O ideal olímpico é um ideal de harmonia e camaradagem entre atletas de todas as nações e etnias, mas é também um ideal de competição.
O cerimonial pede hoje que, no momento da abertura, as delegações nacionais desfilem em grupos separados. O mesmo pede que, no fechamento, os atletas entrem no estádio e confraternizem sem se organizar em blocos nacionais. A mensagem olímpica, em suma, seria algo assim: é bom e necessário competir e torcer segundo as diferenças nacionais -mas com a intenção de reduzi-las, de consumi-las pelos jogos. Trégua de guerra, deponhamos as armas e, concorrendo no "fair play", seremos purificados do que nos opõe. Nossas brigas se resolverão numa pelada na qual, lutando, ganharemos respeito e amizade uns pelos outros. Os Jogos nos tornarão melhores e realizarão o sonho moderno de um mundo unificado, global.
Desse ponto de vista, embora os ódios étnicos estejam bem vivos, o próprio desfile olímpico poderia nos deixar otimistas. Por exemplo: os corredores canadenses já foram negros caribenhos, e os jogadores de tênis de mesa de muitos países ocidentais tendem a ter estranhos sobrenomes chineses. Será que isso não mostra um mundo que aos poucos consegue estar em paz com suas diferenças?
Pode ser. Mas há uma versão menos idílica do ideal olímpico, segundo a qual ele é apenas uma faceta de um projeto brutal de globalização.
Se me lembro direito, foi em 1992, na Olimpíada de Barcelona, que Michael Jordan ameaçou não subir ao pódio sob a bandeira americana se ele não fosse autorizado a usar e a mostrar seu tênis Nike. Curioso: quando Tommie Smith e John Carlos, em 1968 (Olimpíada da Cidade do México), ergueram os punhos cerrados em luvas pretas, símbolo dos Panteras Negras, eles foram banidos dos Jogos por ordem do Comitê Olímpico Internacional. Foi dito que eles abusaram da Olimpíada. Jordan, que quis vender sapatos, atividade notoriamente considerada bem mais importante do que protestar contra a opressão racial, não foi banido em 1992 (estou sendo irônico).
Parece que o ideal de ultrapassar as diferenças nacionais, culturais e raciais é mais bem admitido quando o projeto se integra ao sonho neoliberal: que sejamos todos consumidores abstratos. Encontraremos a paz por circularmos livremente como as mercadorias e por nos identificarmos com as marcas que qualificam nossos estilos de vida.
É possível escutar o ideal olímpico como um resumo do projeto neoliberal: que todos compitam e concorram sem levar em conta diferenças nacionais, culturais ou étnicas. Somos apenas corredores da mesma maratona (econômica).
Quem sabe em 2100 os atletas olímpicos não entrem mais na arena atrás de bandeiras nacionais (aliás, quais? A Europa já está unida, a América Latina poderia estar, assim como a Oceania, a América do Norte etc.), mas, sim, atrás de bandeiras das corporações. Entra a Nike! Lá vêm a Adidas e a Reebok!
Mas isso é ficção científica. Em Atlanta, ainda desfilaram as nações. Acima delas, só a Coca-Cola, patrocinando a todas. Ao lado (lembra?), uma estranha bomba -ainda não se sabe direito quem a colocou.
É isso: vamos ver quem desfila em Sydney. A propósito, eis um quiz de última hora: Gustavo Kuerten joga para que time, Olympikus ou Diadora?


E-mail: ccalligari@uol.com.br



Texto Anterior: "Senta a Pua" vence prêmio no DF
Próximo Texto: Panorâmica: Ex-baterista do Police grava com Sepultura
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.