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CONTARDO CALLIGARIS
Olimpíada
A partir da semana que vem
estarei em Sydney, comentando a Olimpíada. Vou me ausentar desta página para escrever,
em dias alternados, no especial
olímpico do caderno Esporte e
do UOL. Voltarei em outubro.
Os Jogos modernos têm um século quase redondo (as Olimpíadas recomeçaram em 1896, depois
de uma interrupção de um milênio e meio). Eles são a expressão
do espírito de nossos tempos.
No século que acaba, mais do
que nunca, homens e mulheres, às
vezes populações inteiras, viajaram, migraram e se transplantaram. Todos, viajantes e hóspedes,
tiveram de lidar com diferenças
étnicas e culturais extremas e encontrar jeitos de conviver.
O século promulgou assiduamente ideais de tolerância e valoriza hoje o multiculturalismo.
Mas, por isso mesmo, também foi
um dos séculos que mais sofreu de
ódio e intolerância racista -e o
que mais praticou genocídios.
A contradição é apenas aparente. Nossa cultura encoraja seus
membros a negligenciar as diferenças e a se reconhecerem todos
como pertencendo à mesma espécie. Ora, quanto mais esse ideal é
propagado e imposto, tanto mais
os homens são seduzidos por
qualquer diferença que lhes permita isolar os outros como detestáveis e se reconhecerem, portanto, como eleitos e especialmente
amáveis.
Quando a idéia da igualdade de
todos se torna doutrina dominante, é inevitável que pequenas
diferenças sejam invocadas para
justificar ódios, segregações e extermínios. Ninguém gosta, ao que
parece, de ser simplesmente um
entre outros. "Somos todos
iguais!", conclamamos em coro. E
logo, virando a cabeça, muitos
sussurram: "Sim, é mesmo, mas,
justamente, há uma pequena diferença que torna esses outros detestáveis".
Nesse paradoxo crucial para o
século, as Olimpíadas não são
apenas uma encenação de bom-mocismo universalista. Elas propõem uma solução. O ideal olímpico é um ideal de harmonia e camaradagem entre atletas de todas as nações e etnias, mas é também um ideal de competição.
O cerimonial pede hoje que, no
momento da abertura, as delegações nacionais desfilem em grupos separados. O mesmo pede
que, no fechamento, os atletas entrem no estádio e confraternizem
sem se organizar em blocos nacionais. A mensagem olímpica, em
suma, seria algo assim: é bom e
necessário competir e torcer segundo as diferenças nacionais
-mas com a intenção de reduzi-las, de consumi-las pelos jogos.
Trégua de guerra, deponhamos as
armas e, concorrendo no "fair
play", seremos purificados do que
nos opõe. Nossas brigas se resolverão numa pelada na qual, lutando, ganharemos respeito e amizade uns pelos outros. Os Jogos nos
tornarão melhores e realizarão o
sonho moderno de um mundo
unificado, global.
Desse ponto de vista, embora os
ódios étnicos estejam bem vivos, o
próprio desfile olímpico poderia
nos deixar otimistas. Por exemplo: os corredores canadenses já
foram negros caribenhos, e os jogadores de tênis de mesa de muitos países ocidentais tendem a ter
estranhos sobrenomes chineses.
Será que isso não mostra um
mundo que aos poucos consegue
estar em paz com suas diferenças?
Pode ser. Mas há uma versão
menos idílica do ideal olímpico,
segundo a qual ele é apenas uma
faceta de um projeto brutal de
globalização.
Se me lembro direito, foi em
1992, na Olimpíada de Barcelona,
que Michael Jordan ameaçou não
subir ao pódio sob a bandeira
americana se ele não fosse autorizado a usar e a mostrar seu tênis
Nike. Curioso: quando Tommie
Smith e John Carlos, em 1968
(Olimpíada da Cidade do México), ergueram os punhos cerrados
em luvas pretas, símbolo dos Panteras Negras, eles foram banidos
dos Jogos por ordem do Comitê
Olímpico Internacional. Foi dito
que eles abusaram da Olimpíada.
Jordan, que quis vender sapatos,
atividade notoriamente considerada bem mais importante do
que protestar contra a opressão
racial, não foi banido em 1992
(estou sendo irônico).
Parece que o ideal de ultrapassar as diferenças nacionais, culturais e raciais é mais bem admitido quando o projeto se integra ao
sonho neoliberal: que sejamos todos consumidores abstratos. Encontraremos a paz por circularmos livremente como as mercadorias e por nos identificarmos
com as marcas que qualificam
nossos estilos de vida.
É possível escutar o ideal olímpico como um resumo do projeto
neoliberal: que todos compitam e
concorram sem levar em conta diferenças nacionais, culturais ou
étnicas. Somos apenas corredores
da mesma maratona (econômica).
Quem sabe em 2100 os atletas
olímpicos não entrem mais na
arena atrás de bandeiras nacionais (aliás, quais? A Europa já está unida, a América Latina poderia estar, assim como a Oceania, a
América do Norte etc.), mas, sim,
atrás de bandeiras das corporações. Entra a Nike! Lá vêm a Adidas e a Reebok!
Mas isso é ficção científica. Em
Atlanta, ainda desfilaram as nações. Acima delas, só a Coca-Cola,
patrocinando a todas. Ao lado
(lembra?), uma estranha bomba
-ainda não se sabe direito quem
a colocou.
É isso: vamos ver quem desfila
em Sydney. A propósito, eis um
quiz de última hora: Gustavo
Kuerten joga para que time,
Olympikus ou Diadora?
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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