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CARLOS HEITOR CONY
Como pagar uma dívida que precisa ser paga?
Palavras, palavras, palavras. A banalidade da citação será acrescida pela do velho
ditado: ""Palavras, o vento as leva!". Dá no mesmo a sabedoria de
Shakespeare e a do povo.
É nela que penso neste aniversário da nossa Independência, o
centésimo não sei quantos. Mais
um pouco e estaremos comemorando o segundo aniversário do
brado retumbante: "Independência ou morte!".
Repetido em tom de farsa, como
manda a tradição, o grito que tivemos dia desses foi ""exportar ou
morrer". Palavras, palavras, palavras. Essas, o vento nem precisou levar.
Assim como o Sete de Setembro
nos livrou apenas das cortes de
Lisboa e deu-nos direito a uma
bandeira e a um hino que prevaleceram até o advento da República, o "exportar ou morrer" não
deixou de ser um lema que nem
sequer colou como marketing.
Não ficamos independentes à
força de um grito. Berro não resolve mesmo. Até hoje dependemos de cortes estrangeiras, estejam elas sediadas em Lisboa,
Londres ou Washington. Chamar
o FMI e o G-8 de ""cortes" talvez
seja exagero. São instituições democráticas, liberais e até mesmo
neoliberais, além de globalizadas
pelo uso e pelo abuso.
Assim como o brado retumbante de 1822 não nos tornou realmente livres, a abolição da escravatura de 1888 não tornou os escravos livres: transformou-os em
bóias-frias, em subcidadãos que,
até hoje, sob diversas camadas
trabalhistas, continuam na pior,
sem a garantia do teto precário e
da comida insuficiente fornecidas
pela casa-grande, que, esta sim,
continuou intata em seus privilégios e em sua força.
Libertados pela Lei Áurea, os escravos tiveram a liberdade de
morrer ou de aceitar subempregos, que até hoje prevalecem para
os afro-brasileiros. E este é o meu
assunto de hoje.
No domingo, escrevi na pág. A2
uma crônica sobre dois assuntos
paralelos, mas diferentes: a reunião anti-racista que se realizou
na África do Sul e a reivindicação
que, de tempos em tempos, é feita
por lideranças negras, no sentido
de serem indenizados todos os cidadãos da raça afro-brasileira,
descendentes dos escravos que
durante séculos sofreram nos
campos, nas minas, nas cozinhas
das casas urbanas.
Impossível quantificar essa dívida histórica. No pós-guerra de
1945, Alemanha e Áustria, para
apagarem a mancha do anti-semitismo que criou o Holocausto,
providenciaram um tipo de indenização em dinheiro aos sobreviventes e descendentes daqueles
que tudo perderam durante o nazismo, até mesmo a vida.
Bem ou mal, uma ínfima parte
de judeus, em diversas partes do
mundo, continua recebendo essa
indenização quase simbólica,
pois, como disse acima, é impossível quantificar o preço de tão horrendo crime.
Algumas lideranças negras,
aqui e nos Estados Unidos, invocam este precedente para se habilitarem a um tipo de indenização
também simbólica, impossível de
ser quantificada e impossível de
ser paga operacionalmente. Como cadastrar os milhões de descendentes de escravos? Como estabelecer a quantia que deverá
ser paga?
O fato é que devemos -o Brasil
como um todo, bem como outros
países que adotaram a escravidão- uma reparação moral e
material aos netos, bisnetos e tataranetos dos africanos que aqui
chegaram sequestrados e viajaram em navios negreiros acorrentados em lotes. Quando morria
um negro, o lote inteiro era jogado ao mar, pois as correntes só podiam ser rompidas ao chegarem
em terra firme.
Como disse Castro Alves, era
horror e mais horror. Era infâmia
demais. Horror e infâmia que, de
certa forma, prevalecem em nossa
sociedade. Temos leis anti-racistas, e agora mesmo se discute a
criação de vagas em universidades para estudantes negros. Mas,
até chegar à universidade, o negro já terá passado por discriminações que continuam e continuarão. O racismo explícito é
condenado, mas o implícito continua em toda a parte -no mercado de trabalho, principalmente.
Levantei a hipótese de dar aos
afro-brasileiros uma isenção de
10% nos preços dos aluguéis, da
saúde, da educação, do transporte de massa e dos itens básicos da
alimentação.
No curto prazo, haveria um aumento geral nos preços de todos
os produtos -o que daria na
mesma-, mas, a médio prazo, a
situação se normalizaria. E haveria uma data para acabar essa
discriminação às avessas, como
2088, por exemplo, segundo centenário da abolição.
Brancos e negros, maiores de 65
anos, ganham na carteira de
identidade a indicação de um privilégio que lhes dá gratuidade nos
ônibus, nos trens, no metrô e nas
barcas, além de atendimento preferencial nas causas trabalhistas e
nas filas dos bancos.
Não seria a volta daquela identificação que prevaleceu até há
pouco, em que os indivíduos eram
discriminados como brancos, negros ou pardos. Muitos brasileiros
ainda têm na certidão de nascimento a identificação de cor, felizmente abolida.
Assim como há a indicação
""maior de 65 anos" na carteira de
identidade dos idosos, poderia
haver a indicação ""origem afro-brasileira", que me parece politicamente correta. E que daria aos
descendentes dos escravos a indenização que todos lhes devemos.
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