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CINEMA
"Cidade de Deus" questiona produção nacional
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Cidade de Deus" é um filme-marco não apenas pela discussão que suscita em torno
de seus temas (favela, violência,
juventude, drogas), mas por colocar em debate -e de certo modo
em crise- o próprio cinema brasileiro.
Muitas das críticas que a fita de
Fernando Meirelles e Katia Lund
vem recebendo são legítimas.
Do ponto de vista político, por
exemplo, pode-se questionar a
apresentação da favela como um
espaço de violência fechado em si
mesmo, como se a droga fosse
produzida e consumida toda lá
dentro e o resto da sociedade não
tivesse nada a ver com o tráfico.
Invertendo o dito popular, o filme parece dizer: "Eles são pretos,
eles que se desentendam". Nesse
sentido, o contraponto natural seria "O Invasor", de Beto Brant, cuja conclusão é: "Estamos todos no
mesmo barco".
Do ponto de vista sociológico,
pode-se condenar -como a antropóloga Alba Zaluar- a proporção falsa entre negros e brancos na favela. Do ponto de vista
moral, a exposição de crianças a
situações de extrema brutalidade.
Pode-se ainda criticar a adoção
de fórmulas narrativas do filme
de ação americano, destinadas a
garantir a identificação do espectador com os bandidos "do bem",
contra os "do mal".
O que não se pode, porém, é dizer que se trata de um filme ruim,
e muito menos rejeitá-lo em bloco
sob o argumento de que estetiza a
miséria, configurando uma "cosmética da fome".
Esse rótulo foi um achado da
pesquisadora Ivana Bentes para
caracterizar uma leva de filmes
edulcorados e publicitários que
passeiam como turistas pelas mazelas sociais do país. Mas hoje a
expressão tende mais a esconder
do que a revelar os traços da produção cinematográfica recente.
"Cidade de Deus", a despeito de
sua composição, digamos, "estilosa", tem pouco a ver com essa
estética (ou cosmética).
Visto sem antolhos, é um filme
de vigor espantoso e de extrema
competência narrativa. Seus
grandes trunfos são o roteiro engenhosamente construído (sim, à
maneira americana, sem gorduras nem pontos sem nó) e a consistência da "mise-en-scène".
Não há, que eu me lembre, uma
única cena frouxa ou malfeita em
"Cidade de Deus", nem tampouco um diálogo que soe pobre ou
artificial. Se existe alguma redundância e autocomplacência, ela
está na narração em "off".
A atuação do elenco como um
todo eleva a interpretação cinematográfica no Brasil a um novo
patamar. É a culminância de um
processo iniciado em "Pixote" e
que teve outro momento alto em
"Bicho de Sete Cabeças". Nada a
ver com teatro ou televisão.
Nesse aspecto ocorre algo curioso. Ao constituir seu elenco com
semi-amadores oriundos das favelas, Meirelles incorporou ao
próprio modo de produção de
"Cidade de Deus" algo que é cobrado do filme: a apresentação de
alternativas positivas para os jovens das comunidades faveladas.
Todas essas conquistas -sem
falar da hábil assimilação de técnicas da publicidade e do videoclipe com propósitos narrativos
essencialmente cinematográficos- correm o risco de ser obscurecidas por uma reação defensiva e ressentida, armada com o
slogan "cosmética da fome".
Cidade de Deus
Direção: Fernando Meirelles
Com: Matheus Nachtergaele, Seu Jorge
e grupo Nós do Cinema
Onde: nos cines Belas Artes/Sala Villa-Lobos, Espaço Unibanco 1 e circuito
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