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CONTARDO CALLIGARIS
"Vôo United 93", quatro estrelas
De um lado, homens sem princípios fixos,
do outro, princípios fixos sem homens
DURANTE DEZ anos, a cada
mês, viajei entre São Paulo e
a costa leste dos EUA. Naquele tempo, existia um vôo diurno,
via Miami, que eu preferia.
Mais de cem vezes, entrei num
avião de manhã cedo, em Nova York
ou em Boston, no aperto da classe
econômica ou (quando as milhas
acumuladas permitiam um "upgrade") na executiva.
Graças ao cartão de fidelidade, entrava na cabine entre os primeiros,
sentava e observava o desfile de
meus companheiros de viagem: homens e mulheres de negócios, casais
e famílias que saíam de férias para a
Flórida, idosos que moravam na
Flórida e voltavam para lá depois de
visitar filhos e netos, e por aí vai.
Pálidos de sono, naquela hora cinzenta, parecíamos uma turma de
fantasmas da madrugada, reunidos
apenas pelo acaso. Mas tínhamos algo em comum: uma mesma disposição a viajar por mil razões, no fundo
(salvo exceções), todas fúteis.
No fim do livro primeiro de "O Capital", Marx descreveu a "acumulação primitiva", espécie de pecado
original do capitalismo. O processo
se deu entre os séculos 14 e 15, com a
extinção do servo feudal e a criação
de um exército de homens e mulheres errantes que, para sobreviver, só
podiam vender sua força de trabalho
pelo mundo afora.
Transformamos aquela violência
inicial numa virtude: acabamos gostando de nossa errância. Viajamos
facilmente, a lazer, a negócios ou por
amor: a dor do desterrado foi compensada pelo anseio de liberdade e
por uma fome voraz de novas experiências.
Lembrei-me de minhas turmas
matinais de viajantes assistindo a
"Vôo United 93", o filme de Paul
Greengrass que reconstrói a última
viagem do UA 93, na manhã de 11 de
setembro de 2001.
O vôo foi o único que não atingiu
seu alvo (o Capitólio ou a Casa Branca, em Washington), mas caiu nas
planícies da Pensilvânia. Pelos telefonemas que os passageiros conseguiram dar na última meia hora de
vôo, sabe-se o seguinte: eles aprenderam que os outros aviões seqüestrados tinham sido lançados contra
as torres do World Trade Center e
contra o Pentágono e tentaram se
reapropriar do avião. Agiram para
salvar suas vidas, com um plano improvisado e sussurrado no fundo da
cabine. Não agiram em nome de
uma idéia ou de um princípio "superior". Foram heróis porque venceram a inércia e o medo que poderiam paralisá-los até o fim, na espera
de um milagre improvável.
A confusão na cabine do UA 93
ecoava no despreparo dos controles
de vôo e dos militares, surpreendidos pelos eventos e confrontados
com decisões impossíveis.
Alguns suspeitam que o UA 93 tenha sido abatido antes que se transformasse numa bomba. E se fosse? A
história da revolta de seus passageiros, comprovada por seus telefonemas finais, seria a mesma. Só deveríamos rever (para melhor) nossa
opinião de Dick Cheney, o vice-presidente americano que teria dado a
ordem: uma decisão desse porte
transforma qualquer um numa personagem shakespeariana.
Seja como for, naquela manhã de
11 de setembro, no ar ou na terra,
ninguém sabia o que fazer. Ou melhor, sim, alguém sabia o que fazer:
os terroristas a bordo dos aviões seqüestrados.
Esta seja talvez a oposição que dá
uma dimensão exata do conflito
com o qual começa este século. De
um lado, homens quaisquer, com
pequenos ou grandes sonhos e amores, viajantes, sem princípios fixos
que os orientem, atormentados pela
tarefa de decidir a cada dia e a cada
instante, num compromisso, o que é
certo e o que é errado. Do outro, homens totalmente dedicados a princípios fixos, ou, talvez, fosse melhor
dizer: princípios fixos sem homens.
Os teólogos (muçulmanos, judeus
e cristãos) que me perdoem, mas,
desde a infância, sempre achei que
Abraão, disposto a sacrificar o filho
Isaac e incapaz de mandar Deus para aquele lugar, era um grande panaca. Claro, na infância, eu devia me
identificar com Isaac. Mas não mudei de idéia.
Moral da história: homens ordinários são capazes de uma estupidez
extraordinária quando acham que
têm idéias extraordinárias. Em
compensação, homens ordinários
podem se revelar capazes de gestos
extraordinários apesar de ter idéias
absolutamente ordinárias.
Não sei por que razão o filme foi
avaliado com duas estrelas, apesar
dos elogios dos críticos da Ilustrada
(Pedro Butcher) e do Guia da Folha (Ricardo Calil). Vou passar a
dar notas: "Vôo United 93", quatro
estrelas, imperdível.
ccalligari@uol.com.br
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