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Andy Warhol e a arca perdida
Museu vai mostrar tudo o que o mestre da pop art juntou ao longo da vida em 610 caixas
Divulgação
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Caixa com itens dos anos 60 e 70, que inclui jornal
com manchete da morte do presidente John Kennedy,
catálogos e convites
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
No verão de 1974, Andy Warhol decidiu mudar seu estúdio
para um prédio no outro lado
da rua, da Union Square West
para uma esquina da Broadway. Queria juntar no mesmo
piso as obras e objetos que já
ocupavam três andares do ateliê que deixava para trás -o
mesmo onde levou tiros calibre
32 no baço, estômago, fígado,
esôfago e nos pulmões disparados pela atriz Valerie Solanas,
num atentado em 1968.
Sobreviveu e, seis anos depois, quis abrir uma nova Factory, nome que dava a seus estúdios. Não queria estranhos
mexendo nas coisas e determinou que seus assistentes pessoais teriam de carregar tudo
para o novo endereço. Então
um deles, Vincent Fremont,
desceu à rua e voltou com centenas de caixas modelo 42 F da
A & A Carton Company.
"Disse que as caixas poderiam ser como cápsulas do tempo, e o Andy gostou muito disso", lembra Fremont, que dirigiu a Factory por 20 anos. "Ele
passou a ter sempre uma caixa
perto da mesa dele e jogava tudo dentro. Fez isso até morrer."
De 1974 a 1987, quando Warhol não sobreviveu a uma cirurgia na vesícula, conseguiu encher 610 caixas com tudo que
passou na sua vida: desenhos,
anotações, convites, fotografias, até restos de comida.
Agora o Museu Andy Warhol,
em Pittsburgh, contratou quatro arquivistas para catalogar
tudo que foi encaixotado pelo
maior nome da pop art e pretende lançar neste mês um blog
para destacar, semana a semana, os tesouros de Warhol.
Tem um pôster autografado
de Jackie Kennedy nua, cópias
assinadas de livros de Tennessee Williams, Truman Capote e
Allen Ginsberg. Um pedaço
embolorado de um bolo de casamento, pão mofado, pastilhas
de menta. Cartas de Elizabeth
Taylor e Arnold Schwarzenegger, convites para a festa de
inauguração do Studio 54.
"Andy guardava tudo e todos
os tipos de coisas, de envelopes
vazios ou nunca usados a grandes cartas de celebridades",
conta Matt Wrbican, arquivista
do museu. Ele deve passar os
próximos seis anos mergulhado nas pilhas de caixas, tempo
que deve levar para inventariar
o que sobrou da vida de Warhol.
É como se o artista que fez do
escrutínio da condição de celebridade o mote central de sua
obra agora virasse vítima da
própria lógica, uma estrela fetichizada um tanto em vida e cada vez mais depois da morte.
Nos inventários dos itens de
algumas caixas, obtidos pela
Folha, estão instruções detalhadas para preservar até mesmo um pedaço de pão num embrulho plástico, já invadido por
insetos que devoraram parte
das sobras. Também foram
contadas as balas Altoids esquecidas em várias embalagens
-estão nas caixas 171 e 227.
Esse cuidado obsessivo se
sustenta na visão de parte do
entourage do artista, que vê o
conjunto de suas cápsulas do
tempo como obra. Ele mesmo
considerava, como escreveu
em seus diários, que essas caixas poderiam ser trabalhos em
si. Pensou até em vender algumas delas, mas não conseguia
se desfazer de quase nada.
"Encaramos mesmo isso como obra de arte, um trabalho
em série, com 600 partes", diz
Wrbican. "No diário, ele falava
em vender isso tudo, só que às
cegas, já que o comprador não
poderia olhar o que estava na
caixa antes de levar para casa."
Obsessão pelo comum
Warhol nunca foi em frente
com a ideia porque gostava de
acumular tudo, num colecionismo voraz de fragmentos do
tempo, índices banais da época.
"Ele não conseguia jogar nada
fora", lembra Wrbican. "Andy
gostava de tudo em grandes
quantidades, não comprava um
de nada, eram sempre dez, adorava ter muitos múltiplos de
múltiplos", completa Fremont.
Mesmo das coisas sem valor.
Warhol tinha obsessão pelo comum, a coisa qualquer, e gostava mais ainda se fosse algo que
não era vendido. Roubava talheres de trens e aviões, fazia
estoques de caixinhas de fósforo quando ainda eram distribuídas nos voos da Air France.
"Era um processo de documentar o seu tempo, a cultura
em que ele vivia, as pessoas que
conhecia", descreve Fremont.
"É um momento congelado no
tempo, um pedaço dos anos 70
e dos anos 80 que vai durar enquanto houver essas caixas, como num mapa do passado."
Fremont também acredita
que os índices reais da vida ardida de Warhol possam esclarecer algumas questões e desmontar mitos que surgiram em
torno da Factory e os excessos
de purpurina e anfetaminas.
Se essa mitologia apagou parte do discurso, também ressalta
uma contradição. "Ser fascinado pelo que já foi é diferente de
ser fascinado por algo que existe agora", diz Christopher Makos, fotógrafo que trabalhou
com Warhol e registrava suas
viagens pelo mundo. "Andy era
conhecido por ser do momento, queria ver o último filme,
ouvir o último disco. Nem ele
entenderia esse fascínio de agora por seu próprio passado."
E o passado de Warhol ofusca
o presente dos que sobreviveram à Factory. Makos deve sua
carreira fotográfica aos registros que fez do artista e até hoje
é chamado para expor retratos
e trabalhos daquela época.
Já Paul Morrissey, que produziu os filmes de Warhol, se
ressente de ter sido sempre relegado a um segundo plano nos
créditos. Ele vê na história das
caixas uma metáfora triste da
personalidade de Warhol. "Ele
era uma caixa vazia e usava seu
nome para apresentar o trabalho dos outros", diz Morrissey.
Mas não importa para a história e seus fetiches. "Só existe
um Andy", diz Peter Wise, outro assistente do artista. "Da
mesma forma que só existe um
Elvis ou um Deus."
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