São Paulo, sábado, 07 de outubro de 2006

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MANUEL DA COSTA PINTO

Hospitalidade e testemunho

Novo volume de ensaios de Jeanne Marie Gagnebin remete ao célebre "Lembrar, Repetir, Elaborar", de Freud

"LEMBRAR ESCREVER Esquecer." Essas três palavras dão título ao novo volume de ensaios de Jeanne Marie Gagnebin e remetem ao célebre "Lembrar, Repetir, Elaborar", de Sigmund Freud. Um texto que, segundo a autora, habita como um "palimpsesto" o ensaio "O que Significa a Elaboração do Passado?", no qual Theodor Adorno trata da necessidade de resistir à "destruição da lembrança" -um dos temas que percorrem o livro recém-lançado.
Nascida na Suíça e radicada no Brasil, professora de filosofia e teoria literária, Gagnebin desempenha papel fundamental na recepção de Walter Benjamin e da Escola de Frankfurt. Em "Lembrar Escrever Esquecer", Benjamin e Adorno são onipresentes, porém como personagens de uma trama maior: as relações entre história, literatura e ética da representação.
De certa forma, Jeanne Marie Gagnebin amplia para a totalidade dos fenômenos culturais a idéia benjaminiana de, ao analisar uma obra literária, "tornar evidente, no tempo que as viu nascer, o tempo que as conhece e julga, ou seja, o nosso". Os acontecimentos não sucumbem, assim, à intoxicação proporcionada por uma historiografia cumulativa, que cataloga fatos e festeja datas solenes, deslizando "perigosamente para o religioso ou, então, para as celebrações de Estado, com paradas e bandeiras".
A menção dos vínculos entre mitologia religiosa e irracionalismo político são a cifra do problema que percorre os ensaios, deflagrando seu movimento de "rememoração" (que não se confunde com "comemoração"). A leitura do passado na perspectiva das catástrofes contemporâneas torna-se seu fio condutor -e o leitor terá uma visão clara das reflexões de Adorno sobre a Shoah (o Holocausto nazista) e a impossibilidade da poesia depois de Auschwitz.
Alguns aspectos devem ser destacados: sem negar a singularidade daquele genocídio, Gagnebin afirma que a atualidade do imperativo categórico adorniano ("que Auschwitz não se repita") se desloca agora para contextos não-judaicos, "tão cruéis quanto, ainda que diferentes". Além disso, seu trabalho de exegese flagra contradições e se contrapõe à letra dos autores que estuda.
Nesse sentido, o ensaio de abertura é uma belíssima releitura da "Odisséia" que, na contramão da "Dialética do Esclarecimento" de Adorno e Horkheimer (que viam na obra de Homero uma expressão da continuidade entre o terror mítico e o terrorismo da razão), propõe uma visão mais luminosa, marcada pela noção de "hospitalidade", de reconhecimento do outro, que terá papel decisivo na redefinição da "literatura de testemunho".
Pois se Ulisses retribui o abrigo em casa estrangeira contando histórias, num tempo de catástrofes, como o nosso, a hospitalidade consiste em acolher o relato estarrecedor do horror que não vivemos. "Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro."


LEMBRAR ESCREVER ESQUECER     
Autor: Jeanne Marie Gagnebin
Editora: 34
Quanto: R$ 34 (224 págs.)


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