São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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"Carinhoso", 90, é clássico acidental

Pixinguinha escondeu o choro por uma década, Braguinha fez a letra correndo, e Orlando Silva gravou sem se empolgar

Registro do cantor, há 70 anos, deu a partida na consagração da música, que poderia ter ficado inédita por ser ousada demais

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Gravada mais de 200 vezes, presença obrigatória em qualquer lista das melhores músicas brasileiras, "Carinhoso" despontou para o sucesso eterno logo que foi criada, certo? Errado. Esse choro, composto por Pixinguinha (1897-1973) há 90 anos e que teve seu primeiro registro com letra há 70, é um clássico acidental. Teve tudo para não virar o que virou.
A comédia (vista à distância) de erros começou em 1917, quando nasceu a melodia. Com apenas 20 anos, Pixinguinha não teve coragem de tornar público um choro de duas partes, pois o padrão da época eram três. "Eu não tocava. Ninguém ia aceitar", disse, em 1968, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio.
"Não foi uma busca consciente de renovar o choro. Naquele momento, [a música] não era nada de especial para ele", conta Sérgio Cabral, autor de "Pixinguinha - Vida e Obra".
"Carinhoso" passou 11 anos inédita. Foi gravada em 1928, pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, no lado B de um 78 rotações que destacava "Não Diga Não", de Peri.
"A Pixinguinha-Donga era uma orquestra de estúdio, com repertório pequeno. É possível que ele tenha escolhido "Carinhoso" só para preencher o outro lado. Na época, as orquestras gravavam músicas para serem dançadas, não ouvidas", diz o pesquisador Jairo Severiano. "Carinhoso" está mais para o segundo time.
O cavaquinista e historiador de choro Henrique Cazes relativiza o acaso. Ele lembra que são da mesma época "Lamentos" e "Desprezado", outros "choros revolucionários". Paralelamente, Pixinguinha também buscava uma música marcadamente afro-brasileira, como em "Samba de Nego".
"Acho que ele não se sentia pronto em 1917. Depois do workshop de orquestração que fez em anos de teatro de revista, resolveu usar suas ferramentas em processos revolucionários. Apesar de ser tremendamente popular, "Carinhoso" é uma das músicas mais complicadas que existem, em especial por causa das modulações na segunda parte", afirma Cazes.

Sucesso entre músicos
Cazes ainda lembra que a ousadia de "Carinhoso" foi logo percebida por "músicos sagazes". O primeiro arranjo que Radamés Gnattali fez, como exercício, foi para "Carinhoso", em 1929. "Ficou uma merda", recordava, com a classe habitual, o maestro, que oito anos depois orquestraria a primeira gravação da música com letra.
Pixinguinha fez uma nova versão em 1929, com a Orquestra Victor Brasileira, e o bandolinista Luperce Miranda fez a sua em 1934 -em ambas o título foi grafado "Carinhos", outro tropeço. Mas só os músicos conheciam o tema.
Em outubro de 1936, Braguinha (João de Barro) foi instado pela atriz e cantora Heloísa Helena a escrever uma letra para o choro, pois ela participaria naquele mês do espetáculo beneficente "Parada das Maravilhas". Braguinha, segundo contava, foi conversar com Pixinguinha no Dancing Eldorado, na praça Tiradentes (centro do Rio), ouviu a melodia e na mesma noite escreveu os versos. Também para ele não era nada de especial.
"Claro que não é uma letra feia, mas não é uma obra-prima. Braguinha tem coisas melhores. Mas ele sempre foi bom comerciante e sabia que valia pôr letra num choro de Pixinguinha", diz Severiano, autor da biografia "Yes, Nós Temos Braguinha".
Não só ele. Pedro Caetano, por encomenda de Orlando Silva, e Araci Cortes também letraram a música, mas Mr. Evans, o todo-poderoso da Victor, preferiu a de Braguinha. Ele chamou Francisco Alves e Carlos Galhardo para interpretá-la, mas ambos desprezaram a canção. Orlando, ainda um cantor em ascensão, ficou com a tarefa sem se empolgar e a gravou em 28 de maio de 1937. Sua prioridade era a valsa "Rosa", que Pixinguinha compusera também em 1917 e ganhara letra de Otávio de Souza. Foi o outro lado do disco.
"Mas é claro que ele percebeu a beleza da música, e a pôs como prefixo de seu programa na rádio Nacional, o que ajudou muito na popularização de "Carinhoso". É o maior hino amoroso da música brasileira", resume Jonas Vieira, autor de "Orlando Silva - O Cantor das Multidões".
De acordo com o pesquisador Silvio Julio Ribeiro, só em LP existem 207 registros de "Carinhoso". Silvio Caldas, Ângela Maria, Elis Regina, Maria Bethânia e Nana Caymmi estão entre as intérpretes da música.


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