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Comentário
Ouvidos juntos, novos CDs de Bethânia revelam unidade
Zélia Duncan comenta "Sua" e "Encanteria", os novos álbuns da cantora baiana
ZÉLIA DUNCAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Chegam então na minha casa
"Tua" e "Encanteria", os novos
álbuns de Maria Bethânia. Pensando no "álibi de ter nascido
ávida", abro o envelope com
pressa e começo a tentar ouvi-los pelas imagens.
Sou da geração que acredita
nas capas, que precisa delas.
São fotos verticais, que apontam aos meus olhos que o caminho é sempre mais que a chegada e que ela, já tão imensa, sempre estará disposta a crescer.
A contracapa me dá outras
pistas. Em uma, "Tua", há uma
impossível bússola entalhada
pelas palavras "love", "yes",
"no", "me", num quase coração
de ferro, onde uma seta aponta
para a palavra "yes". Sim, o coração de Bethânia diz sim.
Na outra, "Encanteria", suas
mãos, pintadas de um vermelho índio, tocam o tronco de
uma árvore. Bethânia sempre
encosta no fundamental, se alimenta de suas raízes, não as
perde de vista.
Fone nos ouvidos para não
perder nada, deixo Bethânia
desfolhar as melodias que escolheu em "Tua". Ah, o sentimento de cantar, o sopro desse instrumento misterioso que mora
dentro da gente.
Preciso de duas audições para absorver também os outros
instrumentos, se não Bethânia
me leva sozinha para o seu universo onde a voz se basta.
O piano de João Carlos Assis
Brasil me traz do transe vocal
para o transe da primeira canção como um todo. Afinal, os
autores Dori Caymmi e Paulo
César Pinheiro abrem os trabalhos com jeito de clássico.
Não à toa, composições de
Roque Ferreira, conterrâneo
de Bethânia cada vez mais cantado, aparecem em três ocasiões, inclusive no encerramento, com direito ao acordeon musette (sonoridade
mais francesa) de Toninho Ferragutti.
Sempre que Bethânia canta
algo de Adriana Calcanhotto eu
as ouço como uma dupla. Algo
certo, justo, inteiro e emocionante. A faixa-título, "Tua", não
me deixa mentir.
"Fonte" (Saul Barbosa/ Jorge Portugal) e "Você Perdeu"
(Márcio Valente/ Nélio Barbosa), separadas por uma citação
("Dama, Valete e Rei"), chegam
rasgando a cena, com um jeito
deliciosamente popular.
Lenine abre a linda "Saudade" (Chico César/Moska) como
cantor convidado, fazendo jus
ao convite, com a verve de
quem ouviu muito Bethânia
pela vida. "Saudade desigual,
nunca termina no final."
A excelência de outras participações -como as de Hamilton de Holanda, Paulinho
Trompete e Victor Biglione-
abraçam amorosamente ainda
as belas "Até o Fim" (Cézar
Mendes/ Arnaldo Antunes),
"Remanso" (Moacyr Luz/ Aldir
Blanc) e "O que Eu Não Conheço" (Vercillo/ J. Velloso).
"Encanteria ", assinada por
Paulo César Pinheiro, samba
forte, oráculo de força e predestinação, nomeia o outro álbum.
"Quero nada que clareia, quem
clareia aqui sou eu." Aqui, Bethânia é natureza, prece, reafirmação do olho d'água de sua vida e de seu canto. Mas, ainda
assim, inédita, trazendo a brisa
do que está sempre sendo descoberto por ela. O prazer renovado de estar em cena porque
tem muitas coisas para dizer.
Roque Ferreira e sua produção generosa aparecem não
menos que quatro vezes, ao lado de Paulo Pinheiro, Pedro
Amorim, Jaime Alem, Consuelo de Paula, Etel Frota, Rubens
Nogueira, Vanessa da Mata e
Vander Lee. Caetano e Gil se
revezam na irresistível "Saudade Dela" (Roberto Mendes/ Nizaldo Costa) para matar nossa
saudade dos três juntos.
"Encanteria" não é mais brasileiro, porém soa mais regional e enraizado, conforme prometia a linda contracapa.
Agora, misturo "Encanteria"
e "Tua" para tentar entender
por que eles são dois, mas confesso que, no meu iPod, vou
passar de um para o outro sem
perceber. Mais do que ponte, a
alma da voz amarra os assuntos, os autores e tudo mais que
se transforma no desejo de Bethânia de abrir a boca e nos levar para onde ela quiser.
Assim como no Flautista de
Hamelin, seguimos desarmados e felizes pelas estradas da
Bahia e do mundo.
ZÉLIA DUNCAN é cantora e compositora.
TUA e ENCANTERIA
Artista: Maria Bethânia
Gravadoras: Biscoito Fino ("Tua") e
Quitanda ("Encanteria")
Quanto: R$ 34,90, cada disco
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