São Paulo, quarta-feira, 07 de outubro de 2009

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MARCELO COELHO

Inocências de classe média


Tudo o que se diz a respeito de direitos humanos dos presos caiu em descrédito para a maioria da população


UMA DAS ironias da Rio-2016 é que nosso filme promocional em Copenhague foi feito pelo cineasta Fernando Meirelles. Trata-se de um talento e tanto, e seu trabalho deve ter contribuído para a decisão do Comitê Olímpico.
Sou do tempo em que as salas de projeção, de vez em quando, trocavam os rolos dos filmes. Felizmente, com as técnicas digitais, isso deixou de acontecer. Porque fico imaginando se, por equívoco, tivessem projetado cenas do premiado "Cidade de Deus", do mesmo Meirelles, em vez de uma produção simpática à Cidade Maravilhosa. Mas não quero ser espírito de porco (pelo menos não completamente). Os tempos são outros. A euforia em torno da Olimpíada já leva algumas pessoas a acreditarem que até o problema das favelas estará resolvido em 2016.
É mais um capítulo do fenômeno que comentei na semana passada. Hasteamento de bandeira nas escolas, pré-sal, Brasil no G-20, Olimpíada no Rio: em meio a tantas manifestações de entusiasmo, gostei de ter assistido ao filme "Salve Geral", de Sérgio Rezende. O tema, antes que me acusem de bairrismo, são os ataques do PCC em São Paulo, em 2006.
Como em outros filmes brasileiros do gênero ("Tropa de Elite" e o próprio "Cidade de Deus"), houve quem visse em "Salve Geral" muita espetacularização da violência, quando não alguma velada apologia do crime organizado.
Minha tendência é sempre discordar desse tipo de críticas. Qualquer tentativa cinematográfica de retratar essa realidade está obrigada a dar um mínimo de razões, de motivos, para que os personagens façam o que fazem. E, diga-se de passagem, "Salve Geral" é bem menos violento do que seus congêneres.
Claro que alguns chefões do "Partido", como eles dizem, entoam um discurso a favor da paz e dos direitos humanos, reclamando, com toda a razão, de um sistema prisional que, em boa medida, se assemelha aos campos de concentração nazistas. Mas nenhum espectador, vendo a cara daqueles facínoras, há de tomar esse discurso pelo valor de face. O que incomoda é justamente isso.
Tudo o que se diz a respeito de direitos humanos dos presos caiu em descrédito para a vasta maioria da população brasileira. A fraseologia, deixada ao deus-dará, terminou sendo objeto de apropriação por parte do crime organizado; e seu valor real não é nem maior nem menor do que quando utilizada por muitas autoridades constituídas.
Não, o problema de "Salve Geral" não é fazer a apologia do PCC; talvez seja, na verdade, o de fazer uma apologia da classe média. Andréa Beltrão é uma professora de piano cuja situação financeira vai de mal a pior. Seu filho, um bocado bestalhão, termina preso e se envolve com o PCC. Aos poucos, a mãe entra em contato com uma advogada (Denise Weinberg) que centraliza em seu escritório rebeliões de presos, tráfico de drogas nas prisões, sentenças compradas na Justiça.
É esta personagem, chamada de Ruiva, o verdadeiro eixo da narração do filme. O problema de "Salve Geral" é que, por razões compreensíveis, Sergio Rezende quis conquistar a empatia do espectador, criando uma professora de classe média para facilitar nossa identificação emocional com a trama. O filme seria melhor se não procurasse criar nenhuma identificação. Pois a situação da mãe-protagonista acaba girando em falso. Tem de ser passiva diante dos acontecimentos, para que aceitemos o pressuposto de sua inocência, de sua neutralidade ética. Só que, com isso, torna-se uma personagem sensata demais para as encrencas em que se mete.
Uma mãe verdadeiramente enlouquecida e descompensada seria mais convincente, mas poderia perder a simpatia da plateia. Mas a realidade mostrada pelo filme é de tal ordem que não é possível ao espectador identificar-se com ninguém. Tanto que a melhor personagem, a mais interessante, a mais dotada de autonomia, é a antipática e perigosa advogada vivida por Denise Weinberg. Mas talvez eu esteja completamente errado nessa crítica. A protagonista meio apatetada do filme não está ali para despertar nossa empatia: está precisamente no lugar incômodo, quase inexistente, que corresponde à classe média na vida real.
Vê a conflagração e o crime à sua volta e não tem certeza de nada. Não é que deixe de agir: age passivamente, a exemplo de qualquer um de nós, esperando que tudo possa se acertar um dia. Talvez em 2016, por que não?

coelhofsp@uol.com.br


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