São Paulo, segunda-feira, 07 de novembro de 2005

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NELSON ASCHER

A Intifada européia

Os distúrbios que, dos arredores de Paris, alastraram-se para outra cidades francesas já perduram há praticamente duas semanas. A violência, até o momento, tem sido sobretudo material: centenas de carros e ônibus em chamas, edifícios, em especial os públicos, como as escolas, incendiados etc.
Distúrbios desse tipo ocorrem, de tempos em tempos, em pontos variados do planeta. Mas por que na França e por que agora? Nem Bush está visitando o país nem a periferia de sua capital se encontra sob "ocupação" estrangeira. Como é que algo semelhante pode estar acontecendo tão perto do centro de uma nação que (se deixarmos de lado um crescimento beirando o zero e uma taxa de desemprego em torno de 10%) se apresenta ao resto do planeta não apenas como um sucesso indiscutível mas como o grande modelo social, político e econômico a ser imitado, a verdadeira alternativa ao "capitalismo selvagem anglo-saxão".
Talvez a pergunta a se colocar seria: quem é que está se revoltando -e contra quem?
Uma leitura superficial do noticiário nos levaria a supor que se trata de jovens desempregados e "excluídos". Alguns artigos depois, descobre-se que esses jovens são geralmente imigrantes norte-africanos ou os filhos e netos desses. Nada, portanto, impede o leitor pouco informado de, a partir daí, concluir que os insurgentes em questão passam fome, carecem de teto e não reivindicam mais que seus direitos básicos: pão e trabalho.
Sucede que eles não só têm pão de sobra, teto, mesada e acesso tranqüilo a drogas recreativas, como nem sequer precisam, para tanto, trabalhar. Seu nível de vida, assegurado pela sociedade contra o qual se dirige sua insurgência, se situa bem acima do de 2/3 dos brasileiros, para nem falar dos africanos, inclusive os que seguem vivendo nas terras natais dos rebeldes ou de suas famílias. O quebra-quebra em curso nada tem a ver com fluxos de caixa, pelo menos não direta ou imediatamente.
A França assistiu a outras revoltas antes, algumas preponderantemente juvenis, cujos slogans (se bem que nem sempre as idéias subjacentes) remetiam a aspirações libertárias ou revolucionárias. Parece, contudo, que as palavras de ordem da atual rebelião soam, mais ou menos, como "Alá é grande". E não necessariamente em francês. Quanto àqueles que as bradam, estes são na sua maioria jovens, de sexo masculino e muçulmanos. Por mais que se tente tapar o crescente com peneiras de silêncio ou eufemismo, o que se presencia agora na pátria da revolução de 1789 é o início oficial da Intifada européia.
"Oficial" porque quem conheça os subúrbios de lá sabe que não é de hoje que estes se converteram em zonas perigosas ou mesmo proibidas para os demais franceses, para as autoridades em geral e a polícia em particular. Zonas assim, seja na França, seja em diversas partes do Velho Mundo, da Espanha e Itália à Holanda e Suécia, constituem, de fato, territórios independentes nos quais a lei que vigora é a de seus habitantes (ou melhor: do setor "mobilizado", "militante" destes) e onde tudo o que se requer do governo é dinheiro e distância.
Ademais, faz um ano que um cineasta holandês foi assassinado no meio de Amsterdã por denunciar o tratamento que imigrantes infligem a suas mulheres. E coisas piores têm acontecido, na Europa, durante as últimas décadas: desde bombas nos metrôs de Londres e Paris ou nos trens suburbanos de Madri até a execução "extrajudicial" de dissidentes iranianos, passando por ninguém sabe quantos atentados frustrados, continente afora, pelos serviços de segurança.
Convém tampouco esquecer que a França se opôs à invasão do Iraque, que seu presidente era amigo de Saddam Hussein, que seu governo é o principal defensor da causa palestina, que sua política exterior tem sido sistematicamente anti-americana, anti-israelense e pró-árabe. Nenhuma dessas boas ações, no entanto, garantiu-lhe a imunidade permanente. Em suma: se nem os franceses estão seguros, quem está? A presente rebelião não deixa de ser, para todos os efeitos, a guerra de independência de uma (crescente) minoria religiosa que, em termos demográficos, atingiu a massa crítica necessária para desafiar e impor sua vontade à sociedade que a acolheu e sustenta.
Erros e abusos históricos foram, sem dúvida, cometidos. Nenhum dos insurgentes, todavia, é vítima real, digamos, da Guerra da Argélia que se encerrou quatro décadas atrás. Eles são antes seus beneficiários: os privilegiados que lucram com a válvula de escape que o Primeiro Mundo oferece a regiões seletas do Terceiro, regiões que, em vez de procurarem resolver seus problemas, simplesmente os exportam, através da emigração, algo agravado pela propensão européia a (ao contrário do Novo Mundo, que se abriu a um "pool" humano diversificado) receber comunidades homogêneas e compactas.
Nem se pode negar que houve discriminação: afinal, a primeira geração de imigrantes, justamente a mais otimista e adaptável, não foi muito bem aceita pelos europeus. Mas o que esperar de povos incapazes de tolerar, ainda no século 20, populações dez vezes menores de judeus assimilados? Seja como for, as gerações seguintes de imigrantes não vêm se mostrando excepcionalmente dispostas a se assimilar ou adotar costumes e práticas locais que consideram decadentes, quando não antagônicas a suas próprias tradições recém-redescobertas. A virtual proibição de discutir publicamente tais assuntos, um Estado que pensava abafá-los subornando classes sociais inteiras e um modelo econômico avesso ao dinamismo: tudo isso, que ajudou a complicar o problema, será abordado na próxima coluna.

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