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NELSON ASCHER
A Intifada européia
Os distúrbios que, dos arredores de Paris, alastraram-se
para outra cidades francesas já
perduram há praticamente duas
semanas. A violência, até o momento, tem sido sobretudo material: centenas de carros e ônibus
em chamas, edifícios, em especial
os públicos, como as escolas, incendiados etc.
Distúrbios desse tipo ocorrem,
de tempos em tempos, em pontos
variados do planeta. Mas por que
na França e por que agora? Nem
Bush está visitando o país nem a
periferia de sua capital se encontra sob "ocupação" estrangeira.
Como é que algo semelhante pode
estar acontecendo tão perto do
centro de uma nação que (se deixarmos de lado um crescimento
beirando o zero e uma taxa de desemprego em torno de 10%) se
apresenta ao resto do planeta não
apenas como um sucesso indiscutível mas como o grande modelo
social, político e econômico a ser
imitado, a verdadeira alternativa
ao "capitalismo selvagem anglo-saxão".
Talvez a pergunta a se colocar
seria: quem é que está se revoltando -e contra quem?
Uma leitura superficial do noticiário nos levaria a supor que se
trata de jovens desempregados e
"excluídos". Alguns artigos depois, descobre-se que esses jovens
são geralmente imigrantes norte-africanos ou os filhos e netos desses. Nada, portanto, impede o leitor pouco informado de, a partir
daí, concluir que os insurgentes
em questão passam fome, carecem de teto e não reivindicam
mais que seus direitos básicos:
pão e trabalho.
Sucede que eles não só têm pão
de sobra, teto, mesada e acesso
tranqüilo a drogas recreativas,
como nem sequer precisam, para
tanto, trabalhar. Seu nível de vida, assegurado pela sociedade
contra o qual se dirige sua insurgência, se situa bem acima do de
2/3 dos brasileiros, para nem falar
dos africanos, inclusive os que seguem vivendo nas terras natais
dos rebeldes ou de suas famílias.
O quebra-quebra em curso nada
tem a ver com fluxos de caixa, pelo menos não direta ou imediatamente.
A França assistiu a outras revoltas antes, algumas preponderantemente juvenis, cujos slogans
(se bem que nem sempre as idéias
subjacentes) remetiam a aspirações libertárias ou revolucionárias. Parece, contudo, que as palavras de ordem da atual rebelião
soam, mais ou menos, como "Alá
é grande". E não necessariamente
em francês. Quanto àqueles que
as bradam, estes são na sua maioria jovens, de sexo masculino e
muçulmanos. Por mais que se
tente tapar o crescente com peneiras de silêncio ou eufemismo, o
que se presencia agora na pátria
da revolução de 1789 é o início
oficial da Intifada européia.
"Oficial" porque quem conheça
os subúrbios de lá sabe que não é
de hoje que estes se converteram
em zonas perigosas ou mesmo
proibidas para os demais franceses, para as autoridades em geral
e a polícia em particular. Zonas
assim, seja na França, seja em diversas partes do Velho Mundo, da
Espanha e Itália à Holanda e Suécia, constituem, de fato, territórios independentes nos quais a lei
que vigora é a de seus habitantes
(ou melhor: do setor "mobilizado", "militante" destes) e onde tudo o que se requer do governo é
dinheiro e distância.
Ademais, faz um ano que um
cineasta holandês foi assassinado
no meio de Amsterdã por denunciar o tratamento que imigrantes
infligem a suas mulheres. E coisas
piores têm acontecido, na Europa, durante as últimas décadas:
desde bombas nos metrôs de Londres e Paris ou nos trens suburbanos de Madri até a execução "extrajudicial" de dissidentes iranianos, passando por ninguém sabe
quantos atentados frustrados,
continente afora, pelos serviços de
segurança.
Convém tampouco esquecer
que a França se opôs à invasão do
Iraque, que seu presidente era
amigo de Saddam Hussein, que
seu governo é o principal defensor
da causa palestina, que sua política exterior tem sido sistematicamente anti-americana, anti-israelense e pró-árabe. Nenhuma
dessas boas ações, no entanto, garantiu-lhe a imunidade permanente. Em suma: se nem os franceses estão seguros, quem está? A
presente rebelião não deixa de
ser, para todos os efeitos, a guerra
de independência de uma (crescente) minoria religiosa que, em
termos demográficos, atingiu a
massa crítica necessária para desafiar e impor sua vontade à sociedade que a acolheu e sustenta.
Erros e abusos históricos foram,
sem dúvida, cometidos. Nenhum
dos insurgentes, todavia, é vítima
real, digamos, da Guerra da Argélia que se encerrou quatro décadas atrás. Eles são antes seus
beneficiários: os privilegiados que
lucram com a válvula de escape
que o Primeiro Mundo oferece a
regiões seletas do Terceiro, regiões
que, em vez de procurarem resolver seus problemas, simplesmente
os exportam, através da emigração, algo agravado pela propensão européia a (ao contrário do
Novo Mundo, que se abriu a um
"pool" humano diversificado) receber comunidades homogêneas
e compactas.
Nem se pode negar que houve
discriminação: afinal, a primeira
geração de imigrantes, justamente a mais otimista e adaptável,
não foi muito bem aceita pelos
europeus. Mas o que esperar de
povos incapazes de tolerar, ainda
no século 20, populações dez vezes
menores de judeus assimilados?
Seja como for, as gerações seguintes de imigrantes não vêm se mostrando excepcionalmente dispostas a se assimilar ou adotar costumes e práticas locais que consideram decadentes, quando não antagônicas a suas próprias tradições recém-redescobertas. A virtual proibição de discutir publicamente tais assuntos, um Estado
que pensava abafá-los subornando classes sociais inteiras e um
modelo econômico avesso ao dinamismo: tudo isso, que ajudou a
complicar o problema, será abordado na próxima coluna.
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