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CONTARDO CALLIGARIS
"Crazy - Loucos de Amor"
Como se determina a orientação sexual? É uma "escolha" livre
ou uma fatalidade?
ESTÁ EM cartaz "Crazy - Loucos
de Amor", de Jean-Marc Vallée (canadense de língua
francesa). É a história de Zac, um garoto que se torna adulto e homossexual entre uma mãe religiosa, um
pai banalmente machista e quatro
irmãos.
O filme é uma pérola: delicado, engraçado e comovedor. Além disso,
ele é uma obra de utilidade pública.
Ao longo dos anos, muitas vezes,
encontrei e tentei aconselhar casais
que lidavam, de maneiras diferentes, com a descoberta de que seu filho (ou um de seus filhos) era homossexual. As reações variavam,
desde uma aprovação maníaca (que,
em geral, escondia um desespero reprimido) até a decisão sádica de impor a normalidade a tapas ou à força
de excursões obrigatórias ao bordel.
Pois bem, hoje, a todos esses pais
de um jovem homossexual, sem exceção, recomendaria que, antes
mesmo de começar a conversa, eles
assistissem a "Crazy". Estenderia a
recomendação aos eventuais irmãos
do jovem, aos amigos, aos colegas de
colégio e de trabalho.
Deixo aos espectadores o prazer
de uma história que, para usar uma
expressão na moda, melhora singularmente nossa "inteligência emocional". E aproveito para resumir
um debate que o filme reavivou.
Falando com um amigo sobre a
história de Zac, usei a expressão "escolha sexual" (diga-se de passagem
que, no filme, Zac é perfeitamente
"capaz" de desejar e talvez de amar
uma mulher). O amigo desaprovou
energicamente minha expressão. E
lá fomos nós, discutindo, mais uma
vez: a orientação sexual é fruto de
uma especificidade genética ou é um
efeito da história do sujeito? Além
disso, é uma fatalidade ou uma "escolha"? Chegamos a algumas conclusões provisórias, que resumo a
seguir.
1) Os dados científicos não são
conclusivos. Por exemplo, os estudos sobre gêmeos univitelinos (que
já comentei no passado, nesta coluna) deixam, sobretudo, perplexidade: seria esperado que uma maioria
esmagadora de irmãos gêmeos, por
compartilharem o mesmo patrimônio genético, tivesse uma orientação
sexual idêntica, mas as pesquisas
mostram que isso acontece em pouco mais de 50% dos casos -uma
maioria pequena, que poderia ser
explicada pela infância comum.
2) De qualquer forma, o termo
"escolha sexual" é, no mínimo, impreciso: ele sugere uma liberdade
que, de fato, nunca existe em matéria de amor e sexo. Em geral, a fantasia que sustenta o desejo de cada sujeito (homossexual ou não) é mais
próxima de uma imposição do que
de uma criação livre e variável: não é
uma coisa que a gente "escolha".
3) A razão para defender a expressão "escolha sexual" ou, então, seu
contrário (por exemplo, "determinação sexual") é sobretudo política.
Muitos sujeitos cuja conduta
amorosa e sexual é excluída, perseguida ou censurada preferem, hoje,
que a forma de seu desejo seja considerada por todos como uma necessidade biológica. Com isso, eles se libertariam das tentativas (ridículas e
opressivas) de "corrigir" o que, para
eles e de fato, é um desejo não negociável (que pode ser reprimido, mas
não "endireitado"). Em suma, eles
esperam ganhar uma aceitação social definitiva, visto que não há como se opor "à natureza".
Por que não adotar esse argumento, considerando que, de qualquer
forma, a expressão "escolha sexual"
é incorreta?
Eis minha resposta: no mundo dos
meus sonhos, as mais variadas
orientações sexuais e amorosas seriam aceitas sem a justificativa de
determinação biológica alguma,
mesmo se elas fossem livres escolhas dos sujeitos.
Um exemplo vai ser útil. Uma filósofa libertária que admiro, Jeanne
Hersch (que morreu em 2000), foi
minha professora na época em que
ela dirigia a divisão de filosofia da
Unesco. Nessa função, ela teve que
decidir se a Unesco financiaria ou
não uma pesquisa para demonstrar
que não existem diferenças de inteligência entre raças. Hersch votou
contra o projeto, pela indignação de
boa parte de nós, estudantes. Os filósofos apreciarão o sabor kantiano de
seu argumento, que foi o seguinte: é
verdade que a pesquisa poderia desmentir cientificamente muitos estereótipos raciais e racistas, mas autorizar a pesquisa significaria admitir,
mesmo por um instante, que a igualdade de direito possa derivar da
igualdade de fato. Isso era, para
Hersch, inaceitável.
Seguindo sua lição, prefiro defender o princípio da liberdade de "escolha" amorosa e sexual, sem justificativa biológica.
É muito "crazy"?
ccalligari@uol.com.br
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