São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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CRÍTICA

A competição como doutrina moral

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Os norte -americanos é que sabem fazer "reality show"- é que eles acreditam na realidade. Aqui, no Brasil, impera um certo clima de ilha da fantasia: os "reality shows" tomam uma feição ficcionalizada, até mesmo a despeito do formato. É um pouco por isso que "No Limite" deu menos certo que "Big Brother", pois se no primeiro a aspereza das condições materiais vez por outra ia para o primeiro plano, no segundo há muito mais tempo e espaço para intriga, romances, enredos de bem e de mal.
E o gosto brasileiro pela ficcionalização da realidade é tão intenso que a própria idéia da competição fica disfarçada de um embate afetivo e moral entre personalidades- não some, é claro, mas é como se o prêmio fosse uma recompensa justa e não objeto de rivalidade. Pelo menos têm sido assim nos "BBB", sobretudo na edição do ano passado. E este ano não deve ser diferente.
Na América, não: lá a competição é uma doutrina moral solidíssima, com muita sutilezas, rituais e um repertório vastíssimo de discursos. Os "reality shows" exploram esse lugar complexo que competitividade tem na sociedade norte-americana de todas as maneiras. A Sony vem exibindo um "reality show", "America's Next Top Model", que é exemplar nesse sentido.
Como o nome indica, trata-se de descobrir uma modelo no meio de um bando de garotas esqueléticas, vindas de todas as partes do Estados Unidos. O esquema é o mesmo de outros programas semelhantes - o grupo fica confinado em uma casa e passa por diversas provas. A cada episódio, um júri avalia a performance das meninas e escolhe uma para cair fora etc. etc.
O programa é apresentado pela top model Tyra Banks, a quem as garotas idolatram.
Talvez pelo fato de as participantes serem tão magrinhas (e semi-histéricas) ou talvez pela própria rarefação da idéia de "ser modelo", a "America's Next Top Model" é um dos mais cruéis programas do gênero. É doloroso de assistir àquele bando varapaus, sempre à beira das lágrimas, se esfalfando para atingir uma noção maluca de perfeição.
Os sofrimentos são físicos -cabelos são puxados, cortados, tingidos, peles são maquiadas, corpos são emagrecidos-, mas principalmente morais. O sadismo dos comentários, a impiedade das avaliações, a estreiteza do padrão de beleza, o isolamento deixam as garotas -muitas delas, mães adolescentes- em estado lastimável.
E, como cereja do bolo, há Tyra Banks, que parece ter um talento especial para humilhar. Não há uma nesga de solidariedade, de empatia, de misericórdia no olhar daquela mulher. De sua posição de "bem-sucedida", que venceu, ela decide de forma implacável os destinos daquelas meninas.


@ - biabramo.tv@uol.com.br

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