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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Ouriços e raposas
São dois tipos de personalidade distintos presentes na história intelectual do Ocidente
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ONDE ESTÃO os ouriços? Mistério. Uns tempos atrás, passei uma tarde de conversa
em casa de um velho professor inglês que me confessou as suas mágoas mais excêntricas. Como o desaparecimento dos ouriços, já noticiado pelos jornais.
Antigamente, era possível caminhar pelo jardim e encontrar dois ou
três. Hoje, nem sombra. A poluição
urbana, o uso de químicos na agricultura e o avanço do cimento acabaram com a raça. Ele próprio sentia
dificuldades em explicar às netas
certos personagens das fábulas, em
que ouriços falantes abundam.
Ouvi tudo com a educação possível e, quando ele se levantou para recarregar os copos, passei os olhos
pelos jornais do dia. E então reparei,
surpreso, que passavam dez anos sobre a morte do filósofo Isaiah Berlin.
Sorri. A efeméride era perfeita porque nenhum outro pensador utilizou a palavra "ouriço" com tanta inteligência e propriedade.
Aconteceu em 1953, em ensaio sobre Tolstói. Título? "O Ouriço e a
Raposa". E Berlin, socorrendo-se de
um aforismo do poeta grego Arquiloco, relembrava: "A raposa sabe
muitas coisas, mas o ouriço sabe
uma coisa muito importante".
Um jogo de palavras? Mais que isso. Para Berlin, "ouriços" e "raposas" representam dois tipos de personalidade distintos que é possível
encontrar na história intelectual do
Ocidente -e, naturalmente, nas
nossas vidas anônimas e privadas.
Os "ouriços" surgem movidos por
uma idéia central, procurando explicar a diversidade do mundo por
referência a um único sistema monista. Platão era um "ouriço". Dostoiévski também. Marx idem.
As "raposas", pelo contrário, entendem que a diversidade do mundo
não autoriza um único sistema explicativo; são pluralistas porque sabem que os fins são vários e nem
sempre compatíveis entre si. Montaigne, Shakespeare ou Joyce eram
"raposas" por excelência. E Tolstói?
O drama de Tolstói era ser naturalmente uma "raposa", embora desejando ser um "ouriço".
A divisão acabou por entrar na
imaginação popular, e até Woody
Allen, em "Maridos e Esposas", filmou Judy Davis em momento de intimidade, mas incapaz de atingir o
orgasmo porque demasiado preocupada em separar mentalmente os
seus amigos em "ouriços" e "raposas". A piada é boa, claro, mas a herança de Berlin é melhor. Porque as
conseqüências de um jogo aparentemente inocente têm implicações arrasadoras para as grandes construções utópicas que dominaram, de
forma particularmente trágica, o século 20.
Hoje, depois da queda do comunismo, é fácil apontar para as ruínas
e exclamar que as "utopias" não funcionam. Mas Berlin, que atravessou
as ruínas ao fugir da Rússia em 1917,
não se limitou a afirmar o óbvio antes de ser óbvio. Berlin foi mais longe e procurou saber por que motivo
as "utopias" estavam condenadas a
fracassar.
E, para Berlin, as "utopias" estavam condenadas por uma razão
conceitual da maior importância.
Quando falamos de "utopia", falamos de um estado perfeito: uma realidade onde os valores mais caros à
existência humana -a liberdade, a
justiça, a igualdade- se encontram
na sua expressão máxima. Falamos
de uma realidade onde existe a liberdade máxima, a justiça máxima, a
igualdade máxima.
Infelizmente, esse mundo não
passa de uma ilusão. Não apenas pelas razões empíricas que nos levam a
concluir que jamais foi possível habitar tal mundo. Mas porque os valores mais caros à existência humana são múltiplos e nem sempre
compatíveis entre si. Podemos ter
alguma liberdade, alguma justiça, alguma igualdade. Mas a liberdade total dos lobos significa apenas a morte dos carneiros.
O que resta, então? Para Berlin,
resta a certeza de que é necessário
escolher: uma escolha nem sempre
fácil e onde a perda é real. Exatamente como nas nossas vidas anônimas e privadas, onde não é possível
ter tudo. Não por sermos fracos, ignorantes ou confusos. Mas porque
essa é a natureza dos valores: abraçar uns é excluir outros.
Por isso, as "raposas" levam vantagem sobre os "ouriços" ao aceitarem
a perda como inevitável. Para Berlin,
os "ouriços" procuram impor a idéia
perfeita e redentora que os move.
Mas essa idéia, desde o início, transporta uma bomba-relógio que a acabará por destruir, destruindo todos em volta.
Depois de um século bem utópico
e bem tenebroso, o progressivo desaparecimento dos "ouriços" é um
fenômeno a festejar.
Apesar da tristeza do meu velho
professor.
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