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RODAPÉ
Um desdém soberano pelo mundo
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Quantos romances brasileiros relevantes há cuja ação
ocorre no exterior? Pouquíssimos.
Se é que há de fato algum. Brasileiros têm viajado por toda parte e
muitos dentre os melhores escritores nacionais eram e são diplomatas.
No entanto, chegada a hora de
situar a trama, até mesmo as grandes cidades nacionais parecem
inóspitas. Nossa ficção, tipicamente, opta pelo sertão, por alguma aldeia, pelo interior em geral.
Nada é mais fácil do que desmentir generalizações, mas, se utilizadas como hipóteses de trabalho, elas podem ser produtivas. A
insularidade literária, que está em
contraponto com um constante
cosmopolitismo estilístico, decorre no Brasil de hábitos intelectuais
que, de tão arraigados, beiram a
invisibilidade.
Trocando em miúdos, vivemos
num país voltado para si mesmo
que, sob um complexo de inferioridade provavelmente falso, oculta
um desdém soberano pelo mundo. É daí que advém também o vício assumido de se desinteressar
ativamente pela política internacional.
Como apenas a cultura de algumas poucas nações é corriqueiramente frequentada pelo resto do
planeta, os representantes ou conhecedores do que se faz em outras, menores ou menos renomadas, reclamam incessantemente
das injustiças históricas em virtude das quais seus grandes poetas e
ficcionistas, sem conseguir transcender as barreiras de mercado ou
língua, são obrigados a se contentar com uma celebridade meramente local.
Essa é uma reclamação que raramente se ouve entre nós. Quase
nenhuma lamúria a respeito do
desconhecimento em outras terras de Machado ou Drummond.
No entanto, como já se disse, isso é
pior do que um crime: é um erro.
Que fazer, contudo, se a difusão
mundial de tal ou qual cultura
acompanha a pujança econômica,
política, militar?
Cura não há, mas existem paliativos. Um país pequeno e idiomaticamente isolado, a Hungria, lançou, ainda nos anos 30, uma revista, "The Hungarian Quarterly",
que, entre outras tarefas, dispunha-se a divulgar a produção de lá
em boas traduções para o inglês.
Sua publicação, principiada por
um governo semifascista, não foi
interrompida durante o meio século de comunismo e, uma década
após a derrocada deste, a revista
continua circulando. Os húngaros
fundaram também uma editora, a
Corvina, responsável pela difusão
de sua literatura em várias línguas
ocidentais.
Israel, por seu turno, dispõe de
um Instituto para a Tradução da
Literatura Hebraica, que não somente incentiva a publicação de
autores israelenses no exterior, como se encarrega de, por exemplo,
traduzir para o inglês trechos
substanciais de romances e, em seguida, enviá-los às editoras americanas ou européias para despertar
seu interesse.
Há países como os escandinavos
que financiam de todo ou parcialmente a edição estrangeira de seus
literatos, enquanto que nem mesmo franceses, alemães ou italianos
se furtam de, pelo menos, paparicar os tradutores de seus clássicos,
oferecendo-lhes prêmios e bolsas.
Embaixadas e consulados participam ativamente desse tipo de esforço.
Se tudo o que foi descrito acima
tem um aspecto indiscutivelmente
mercenário, convém reconhecer
que nem sempre é só ruim o mercenário. Florestas tropicais destruídas, índios incinerados ou garotos de rua chacinados, para não
falar de futebol, Carnaval e mulatas, são os ícones pelos quais o
Brasil é conhecido e reconhecido
mundo afora. E é justo. Não é inteligente, porém, que o país se conforme a prescindir de uma imagem mais nuançada.
Que tenha havido 1964 não cancela a existência de 1922. Além do
mais, a literatura, o produto cultural mais barato de se exportar, leva
não raro consigo as artes plásticas,
o cinema etc.. E, interesses vis por
interesses vis, o retorno, sob a forma de bolsas no Primeiro Mundo
ou direitos autorais em moeda
forte, não faz mal a ninguém: por
que não instigar os países ricos a
financiarem em parte a cultura de
uma nação pobre? O contribuinte
brasileiro agradeceria aliviado.
Comparado com o que se gasta
às vezes para se levar uma exposição ou alguns filmes a alguma capital européia, projetos como o
húngaro, o israelense ou os escandinavos custariam pouco e renderiam bastante. Convém, todavia,
enfatizar que em nosso país algo
assim só pode começar a dar certo
caso se divulguem preferencialmente os autores mortos. Investir
verbas públicas (não me refiro às
estrangeiras) nos vivos seria um
caminho seguro para se corromper e tornar ainda mais hostil o
ambiente intelectual.
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