UOL


São Paulo, sábado, 08 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Um desdém soberano pelo mundo

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Quantos romances brasileiros relevantes há cuja ação ocorre no exterior? Pouquíssimos. Se é que há de fato algum. Brasileiros têm viajado por toda parte e muitos dentre os melhores escritores nacionais eram e são diplomatas.
No entanto, chegada a hora de situar a trama, até mesmo as grandes cidades nacionais parecem inóspitas. Nossa ficção, tipicamente, opta pelo sertão, por alguma aldeia, pelo interior em geral.
Nada é mais fácil do que desmentir generalizações, mas, se utilizadas como hipóteses de trabalho, elas podem ser produtivas. A insularidade literária, que está em contraponto com um constante cosmopolitismo estilístico, decorre no Brasil de hábitos intelectuais que, de tão arraigados, beiram a invisibilidade.
Trocando em miúdos, vivemos num país voltado para si mesmo que, sob um complexo de inferioridade provavelmente falso, oculta um desdém soberano pelo mundo. É daí que advém também o vício assumido de se desinteressar ativamente pela política internacional.
Como apenas a cultura de algumas poucas nações é corriqueiramente frequentada pelo resto do planeta, os representantes ou conhecedores do que se faz em outras, menores ou menos renomadas, reclamam incessantemente das injustiças históricas em virtude das quais seus grandes poetas e ficcionistas, sem conseguir transcender as barreiras de mercado ou língua, são obrigados a se contentar com uma celebridade meramente local.
Essa é uma reclamação que raramente se ouve entre nós. Quase nenhuma lamúria a respeito do desconhecimento em outras terras de Machado ou Drummond. No entanto, como já se disse, isso é pior do que um crime: é um erro. Que fazer, contudo, se a difusão mundial de tal ou qual cultura acompanha a pujança econômica, política, militar?
Cura não há, mas existem paliativos. Um país pequeno e idiomaticamente isolado, a Hungria, lançou, ainda nos anos 30, uma revista, "The Hungarian Quarterly", que, entre outras tarefas, dispunha-se a divulgar a produção de lá em boas traduções para o inglês.
Sua publicação, principiada por um governo semifascista, não foi interrompida durante o meio século de comunismo e, uma década após a derrocada deste, a revista continua circulando. Os húngaros fundaram também uma editora, a Corvina, responsável pela difusão de sua literatura em várias línguas ocidentais.
Israel, por seu turno, dispõe de um Instituto para a Tradução da Literatura Hebraica, que não somente incentiva a publicação de autores israelenses no exterior, como se encarrega de, por exemplo, traduzir para o inglês trechos substanciais de romances e, em seguida, enviá-los às editoras americanas ou européias para despertar seu interesse.
Há países como os escandinavos que financiam de todo ou parcialmente a edição estrangeira de seus literatos, enquanto que nem mesmo franceses, alemães ou italianos se furtam de, pelo menos, paparicar os tradutores de seus clássicos, oferecendo-lhes prêmios e bolsas. Embaixadas e consulados participam ativamente desse tipo de esforço.
Se tudo o que foi descrito acima tem um aspecto indiscutivelmente mercenário, convém reconhecer que nem sempre é só ruim o mercenário. Florestas tropicais destruídas, índios incinerados ou garotos de rua chacinados, para não falar de futebol, Carnaval e mulatas, são os ícones pelos quais o Brasil é conhecido e reconhecido mundo afora. E é justo. Não é inteligente, porém, que o país se conforme a prescindir de uma imagem mais nuançada.
Que tenha havido 1964 não cancela a existência de 1922. Além do mais, a literatura, o produto cultural mais barato de se exportar, leva não raro consigo as artes plásticas, o cinema etc.. E, interesses vis por interesses vis, o retorno, sob a forma de bolsas no Primeiro Mundo ou direitos autorais em moeda forte, não faz mal a ninguém: por que não instigar os países ricos a financiarem em parte a cultura de uma nação pobre? O contribuinte brasileiro agradeceria aliviado.
Comparado com o que se gasta às vezes para se levar uma exposição ou alguns filmes a alguma capital européia, projetos como o húngaro, o israelense ou os escandinavos custariam pouco e renderiam bastante. Convém, todavia, enfatizar que em nosso país algo assim só pode começar a dar certo caso se divulguem preferencialmente os autores mortos. Investir verbas públicas (não me refiro às estrangeiras) nos vivos seria um caminho seguro para se corromper e tornar ainda mais hostil o ambiente intelectual.


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Patrimônio: Profetas de Aleijadinho podem sair do sol
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.