UOL


São Paulo, sábado, 08 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"OS INVICTOS"

Um Faulkner mais "normal" alcança o leitor

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
COLUNISTA DA FOLHA

Um William Faulkner incomum emerge de "Os Invictos" (The Reivers, 1962). Divertido, e até empenhado em contar uma história de maneira clara (ainda assim, é Faulkner, o que descarta a possibilidade de uma narrativa 100% "normal").
O livro descreve as peripécias de um menino branco de 11 anos, Lucius Priest, no condado fictício de Yoknapatawpha, Mississippi, sul dos EUA, cenário de vários romances do autor. Ao lado do brutamontes Boon Hogganbeck, empregado da família, e do cocheiro negro Ned McCaslin, Lucius se mete em uma trapalhada interestadual a bordo do carro do avô.
A caminho do vizinho Tennessee, vão parar em um prostíbulo, vêem-se às voltas com um cavalo roubado e acabam competindo em um hipódromo caseiro, tendo um desnorteado Lucius como jóquei. Tudo em menos de uma semana, tempo que tinham para usar o carro, escondidos, até que pai, mãe e avô de Lucius voltassem do funeral de um parente.
Lucius, o narrador, conta a história no tempo passado, lembrando a infância no começo do século 20, em um Sul que tardiamente se desvencilha do escravismo. Como sempre, em se tratando de Faulkner (1897-1962), Nobel em 1949, há diversos modos de ler a obra.
Por exemplo, como um exercício cuidadoso de reprodução da língua falada de diversos extratos sociais. Ou como um estudo sobre relações entre pais e filhos em um interior que começa a se modernizar. Ou ainda como um romance sobre o "coming of age", o amadurecimento de um garoto que, entre crises de choro e saudades desesperadas da mãe, apaixona-se por uma prostituta -e até briga usando navalhas.
Esta edição de "Os Invictos" serve como porta de entrada à densa obra do romancista. As complexidades com que o leitor se defronta são muito menores, por exemplo, do que no grande texto de Faulkner: "O Som e a Fúria", de 1929.
Neste último, as dificuldades são tantas que algumas edições trazem um guia na introdução, explicando, por exemplo, que há dois personagens chamados Quentin -fato que Faulkner não faz a menor questão de esclarecer.
Já "Os Invictos" é menos exigente -ou menos cruel- com o leitor. Mas também traz algumas marcas do autor, como a profusão de personagens, despejados às toneladas já nas primeiras páginas. Um estudo da Universidade de Mississippi contou 97 nomes de pessoas no livro.
Por fim, uma palavra sobre a tradução, tarefa árdua, já que o texto engloba vários falares de uma época específica no Sul dos EUA. Como transpor isso para o português do Brasil? Com a língua de hoje ou com a do Brasil da mesma época? E de qual região?
Feita a ressalva (a tradução seria mesmo dificílima), é de lamentar que a solução tenha sido a de uma quase literalidade. O resultado não é exatamente português, mas uma anomalia linguística: o "português-traduzido-do-inglês".
Para ficar em um exemplo, o verbo "can" é insistentemente traduzido por "poder", quando muita vezes significa "conseguir", "saber". Aparecem então frases como "você pode se lembrar disso?" ou "esse cavalo pode correr?", que na verdade significam "você se lembra?" e "esse cavalo consegue correr?".
Ainda que a tradução pudesse ser mais cuidadosa -e mais inventiva-, louve-se o lançamento de um título que pode apresentar a um público mais amplo a obra de um dos principais autores dos últimos cem anos.


Os Invictos
The Reivers
   
Autor: William Faulkner Tradução: Waldir Dupont Editora: Arx Quanto: R$ 38 (320 págs.)



Texto Anterior: "Requiem": Tabucchi conjuga afeto e reflexão
Próximo Texto: Livros/lançamentos - Perfil: Manuel Rivas sintetiza o espírito heróico da Galícia
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.