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CONTARDO CALLIGARIS
O futuro da humanidade
O aquecimento global
revela que a ação
coletiva é difícil em
nossa cultura
A ONU criou um órgão para determinar se está (ou não)
acontecendo uma mudança
climática global e, se esse for o caso,
para explicar sua origem e propor
um curso de ação. Na semana passada, esse órgão divulgou um relatório.
Tudo indica que há um aquecimento progressivo do planeta e que
esse fenômeno é causado pelo homem. Nossos filhos e netos já conhecerão seus efeitos devastadores:
a subida do nível do mar ameaçará
nossas costas, e o desequilíbrio climático comprometerá os recursos
básicos -em muitos lugares, faltará
água e faltará comida.
Esse futuro, próximo e sinistro,
não é inevitável: existem ações que
podem estancar ou reverter o processo. Mas o acordo internacional e
os atos são tímidos, se não nulos.
Claro, podemos nos indignar com
os interesses nacionais e particulares que se esquecem da catástrofe
que nos espreita para defender o lucro imediato. Mas a encruzilhada
atual revela, antes de mais nada, um
impasse fundamental da cultura dominante.
Primeiro, um aparte. Nossa espécie se distingue das outras porque se
organiza numa grande variedade de
culturas (nossos hábitos não são
apenas o resultado de uma programação biológica). Essa plasticidade
talvez seja a razão da duração e da
expansão de nossa espécie. A cultura ocidental, hoje dominante, é particularmente plástica (apta a se
transformar). Mesmo assim, é possível que, desta vez, ela não consiga
se adaptar de modo a permitir a sobrevivência da espécie. Talvez a fórmula cultural que fez nosso "sucesso" até aqui seja, amanhã, a razão de
nosso sumiço. Como assim?
Os humanos (sobretudo na modernidade) prosperaram num projeto de exploração e domínio da natureza cujo custo é hoje cobrado. Para corrigir esse projeto, atenuar suas
conseqüências e sobreviver, deveríamos agir coletivamente. Ora,
acontece que nossa espécie parece
incapaz de ações coletivas.
À primeira vista, isso é paradoxal.
Progressivamente, ao longo dos séculos, chegamos a perceber qualquer homem como semelhante, por
diferente de nós que ele seja. Infelizmente, reconhecer a espécie como
grupo ao qual pertencemos (sentir
solidariedade com todos os humanos) não implica que sejamos capazes de uma ação coletiva.
Na base de nossa cultura está a
idéia de que nosso destino individual é mais importante do que o destino dos grupos dos quais fazemos
parte. Nosso individualismo, aliás, é
a condição de nossa solidariedade:
os outros são nossos semelhantes
porque conseguimos enxergá-los
como indivíduos, deixando de lado
as diferenças entre os grupos aos
quais cada um pertence. Provavelmente, trata-se de uma conseqüência do fundo cristão da cultura ocidental moderna: somos todos irmãos, mas a salvação (que é o que
importa) decide-se um por um. Em
suma, agir contra o interesse do indivíduo, mesmo que para o interesse
do grupo, não é do nosso feitio.
Resumo do problema: hoje, nossa
espécie precisa agir coletivamente,
mas a própria cultura que, até agora,
sustentou seu caminho torna esse
tipo de ação difícil ou impossível.
Não sou totalmente pessimista.
Talvez nosso impasse atual seja a
ocasião de uma renovação. Talvez
saibamos inventar uma cultura que
permita a ação coletiva da comunidade dos humanos que habitam o
planeta Terra. Estou sonhando?
Nem tanto.
Afinal, há bastante tempo, nossa
cultura inventa histórias que nos
instigam a agir em nome e no interesse da espécie. Centenas de romances e filmes (bons ou ruins, tanto faz) nos propõem inimigos comuns: grandes epidemias e extraterrestres de todo tipo. Outros filmes e romances promovem uma
nova aliança dos humanos contra
suas próprias invenções: a catástrofe atômica, as máquinas rebeldes e
enlouquecidas. Já existem até filmes que contam a reação (tardia,
claro) da espécie contra o próprio
aquecimento global. E é banal, enfim, que nossas narrativas mostrem
que, apesar da diferença dos indivíduos e da variedade cultural da espécie, nossos destinos são, sempre e
propriamente, cruzados.
Os positivistas diziam que o clima
faz o homem. Pois bem, quem sabe a
mudança climática nos obrigue
mesmo a transformar nossa cultura.
Para melhor.
Última hora. Acabo de assistir ao
filme-documentário de João Jardim, "Pro Dia Nascer Feliz". É uma
visão terna, seca e justa de nossos
adolescentes. Falando em preocupação com o futuro da humanidade,
é um filme imperdível.
ccalligari@uol.com.br
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