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CARLOS HEITOR CONY
Apocalipse em si bemol para agora e sempre
Invoco o Santíssimo Nome
de Deus, Todo-Poderoso, para
garantir que nada tenho contra
as artes plásticas, como nada tenho contra as artes marciais, as
artes pelas artes, as artes do demônio e toda e qualquer manifestação de arte. Contudo, quando
ouço falar em instalações, que
não sejam as sanitárias, sinto
uma pontada no meu orgulho.
Não as entendo nem finjo entendê-las. Ao longo dos anos, ganhei alguma experiência em percorrer museus, conheço todos os
de maior fama e, embora me chateie com a sucessão de túmulos
etruscos e de vasos quebrados,
muito me emociono a cada visita
que faço, sobretudo a dois deles, o
do Prado e a Alte Pinakotek, de
Munique.
O problema das instalações, em
princípio, é que elas não chegam
a ser bonitas e, no geral, não chegam a ser nada, além de uma intenção de dizer alguma coisa que
não precisa ser dita. E, dita, fica
por isso mesmo.
Já vi coisas do arco-da-velha em
matéria de instalações. Um rapaz
de Niterói, que nem tinha sogra,
alugou um imenso galpão e ali
instalou a sua ""Língua de Sogra",
uma coisa vermelha e comprida,
mais de 30 metros, que, olhada de
longe, parecia um desses tapetes
que a TAM coloca nas escadinhas
dos seus aviões.
Não muito longe de Niterói, na
praça 15, aqui no Rio, vi o mesmo
tapete vermelho, comprido e estreito, apenas com o nome mudado para ""Corrimento Vaginal".
Quando colaborava no Suplemento Dominical do "Jornal do
Brasil", que saía aos sábados, fui
convidado para conhecer um dos
trabalhos mais famosos do Hélio
Oiticica. Não lembro o nome de
sua obra nem sei se tinha nome.
Mas era uma coisa.
No quintal da sua casa, ele abrira um buraco e nele enterrara
uma caixa e dentro da caixa havia um troço, não sei se um objeto
qualquer, um poema do Décio
Pignatari ou um pedaço de estopa suja de óleo. Talvez tudo isso
junto e mais alguma coisa.
Foram escritas e publicadas
centenas de louvações à obra-prima, que, segundo um crítico da
época, jogava no lixo da história
todas as obras de Fídias, Michelangelo e Rodin.
Perdi a oportunidade de me
edificar com tal e tanta beleza,
mas nem sempre pude evitar apelos para conhecer coisas iguais ou
piores.
Vi um velho fogão de quatro bocas em cima de patins e com um
exemplar de ""Os Sertões" dentro
do forno. Um pedaço de barbante
pendurado num prego tinha uma
provocação explícita no nome:
""Linha editorial da imprensa
brasileira". No alpendre desativado de uma companhia aérea falida, admirei uma pequena pirâmide de latas de leite condensado
vazias com um título enigmático:
""A epistemologia de uma vaca
precoce".
Um ferro de engomar, daqueles
antigos, na base do carvão, cercado com rodelas de laranjas, ganhou um nome gastronômico:
""Cannard à orange". E por Júpiter! Numa Bienal dos anos 80,
uma cidadã que mais tarde morreria de dengue (foi das primeiras
vítimas do mosquito fatal) bolou
uma complicada parafernália
onde havia um gramofone com
sua enorme tuba, dentro da qual
colocou um rolo de papel higiênico, uma dentadura, uma imagem
de Iemanjá e dois canivetes suíços, um aberto, outro fechado.
Essa obra de arte se dava ao luxo de não ter nome, embora houvesse um cartão em cima de tudo
aquilo com a informação: ""Sem
nome" -o que já era de certa forma um nome.
Em Paris, há dois ou três anos,
vi uma instalação na calçada do
Boulevard Montparnasse. Um cara com cara de holandês ou entidade equivalente, de barbas ruivas e imensas, tinha instalado
aquilo que ele chamava de ""Apocalipse em si bemol para agora e
sempre". Constava de um carrinho de bebê em frangalhos, dentro do qual havia um bidê quebrado nas beiras, do qual saía um
abajur lilás, mas sem a luz difusa
daquele bolero gravado por Dalva de Oliveira.
Fiquei olhando a instalação,
instalando-me eu próprio na calçada para ver a reação dos passantes. Passantes que passavam e
nem reparavam no apocalipse ali
anunciado. Mas, dias depois, numa das revistas culturais que deram poder e glória à França, havia uma gorda matéria com foto
em página dupla e, num cantinho, a cara barbada do tal holandês.
Para começar, não era holandês, mas jamaicano, filho de alemão com belga. Formara-se em
medicina, mandara tudo ao diabo e pegara a estrada. No Hermitage, foi preso porque ameaçou
depredar um quadro de Van
Gogh. Foi preso também numa
igreja de Roma, quando tentava
se masturbar diante do Êxtase de
Santa Tereza de Ávila, que Bernini fez ambiguamente, entre o orgasmo e a exaltação mística.
A revista considerava o ""Apocalipse em si bemol para agora e
sempre" um divisor de águas na
cultura ocidental. Depois dele, tudo o que houvera em matéria de
arte visual era ""obra de trogloditas", manifestação espúria que
começara no figurativismo da arte deixada nas cavernas e terminava em Calder e Max Bill.
Eram oito páginas de texto
compacto, fora as duas com a foto
da obra. Li com atenção a matéria, voltei a Montparnasse para
ver se afinal a compreendia. No
meio do caminho, encontrei uma
estudante de sociologia que morara em Piracicaba. Mudei de itinerário. E, como no poema de
Drummond, nunca pude esquecer que havia uma moça no meio
do caminho.
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