São Paulo, sexta-feira, 08 de março de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Apocalipse em si bemol para agora e sempre

Invoco o Santíssimo Nome de Deus, Todo-Poderoso, para garantir que nada tenho contra as artes plásticas, como nada tenho contra as artes marciais, as artes pelas artes, as artes do demônio e toda e qualquer manifestação de arte. Contudo, quando ouço falar em instalações, que não sejam as sanitárias, sinto uma pontada no meu orgulho.
Não as entendo nem finjo entendê-las. Ao longo dos anos, ganhei alguma experiência em percorrer museus, conheço todos os de maior fama e, embora me chateie com a sucessão de túmulos etruscos e de vasos quebrados, muito me emociono a cada visita que faço, sobretudo a dois deles, o do Prado e a Alte Pinakotek, de Munique.
O problema das instalações, em princípio, é que elas não chegam a ser bonitas e, no geral, não chegam a ser nada, além de uma intenção de dizer alguma coisa que não precisa ser dita. E, dita, fica por isso mesmo.
Já vi coisas do arco-da-velha em matéria de instalações. Um rapaz de Niterói, que nem tinha sogra, alugou um imenso galpão e ali instalou a sua ""Língua de Sogra", uma coisa vermelha e comprida, mais de 30 metros, que, olhada de longe, parecia um desses tapetes que a TAM coloca nas escadinhas dos seus aviões.
Não muito longe de Niterói, na praça 15, aqui no Rio, vi o mesmo tapete vermelho, comprido e estreito, apenas com o nome mudado para ""Corrimento Vaginal".
Quando colaborava no Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil", que saía aos sábados, fui convidado para conhecer um dos trabalhos mais famosos do Hélio Oiticica. Não lembro o nome de sua obra nem sei se tinha nome. Mas era uma coisa.
No quintal da sua casa, ele abrira um buraco e nele enterrara uma caixa e dentro da caixa havia um troço, não sei se um objeto qualquer, um poema do Décio Pignatari ou um pedaço de estopa suja de óleo. Talvez tudo isso junto e mais alguma coisa.
Foram escritas e publicadas centenas de louvações à obra-prima, que, segundo um crítico da época, jogava no lixo da história todas as obras de Fídias, Michelangelo e Rodin.
Perdi a oportunidade de me edificar com tal e tanta beleza, mas nem sempre pude evitar apelos para conhecer coisas iguais ou piores.
Vi um velho fogão de quatro bocas em cima de patins e com um exemplar de ""Os Sertões" dentro do forno. Um pedaço de barbante pendurado num prego tinha uma provocação explícita no nome: ""Linha editorial da imprensa brasileira". No alpendre desativado de uma companhia aérea falida, admirei uma pequena pirâmide de latas de leite condensado vazias com um título enigmático: ""A epistemologia de uma vaca precoce".
Um ferro de engomar, daqueles antigos, na base do carvão, cercado com rodelas de laranjas, ganhou um nome gastronômico: ""Cannard à orange". E por Júpiter! Numa Bienal dos anos 80, uma cidadã que mais tarde morreria de dengue (foi das primeiras vítimas do mosquito fatal) bolou uma complicada parafernália onde havia um gramofone com sua enorme tuba, dentro da qual colocou um rolo de papel higiênico, uma dentadura, uma imagem de Iemanjá e dois canivetes suíços, um aberto, outro fechado.
Essa obra de arte se dava ao luxo de não ter nome, embora houvesse um cartão em cima de tudo aquilo com a informação: ""Sem nome" -o que já era de certa forma um nome.
Em Paris, há dois ou três anos, vi uma instalação na calçada do Boulevard Montparnasse. Um cara com cara de holandês ou entidade equivalente, de barbas ruivas e imensas, tinha instalado aquilo que ele chamava de ""Apocalipse em si bemol para agora e sempre". Constava de um carrinho de bebê em frangalhos, dentro do qual havia um bidê quebrado nas beiras, do qual saía um abajur lilás, mas sem a luz difusa daquele bolero gravado por Dalva de Oliveira.
Fiquei olhando a instalação, instalando-me eu próprio na calçada para ver a reação dos passantes. Passantes que passavam e nem reparavam no apocalipse ali anunciado. Mas, dias depois, numa das revistas culturais que deram poder e glória à França, havia uma gorda matéria com foto em página dupla e, num cantinho, a cara barbada do tal holandês.
Para começar, não era holandês, mas jamaicano, filho de alemão com belga. Formara-se em medicina, mandara tudo ao diabo e pegara a estrada. No Hermitage, foi preso porque ameaçou depredar um quadro de Van Gogh. Foi preso também numa igreja de Roma, quando tentava se masturbar diante do Êxtase de Santa Tereza de Ávila, que Bernini fez ambiguamente, entre o orgasmo e a exaltação mística.
A revista considerava o ""Apocalipse em si bemol para agora e sempre" um divisor de águas na cultura ocidental. Depois dele, tudo o que houvera em matéria de arte visual era ""obra de trogloditas", manifestação espúria que começara no figurativismo da arte deixada nas cavernas e terminava em Calder e Max Bill.
Eram oito páginas de texto compacto, fora as duas com a foto da obra. Li com atenção a matéria, voltei a Montparnasse para ver se afinal a compreendia. No meio do caminho, encontrei uma estudante de sociologia que morara em Piracicaba. Mudei de itinerário. E, como no poema de Drummond, nunca pude esquecer que havia uma moça no meio do caminho.



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