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DRAUZIO VARELLA
Da janela vê-se o Corcovado e o Redentor
O Rio de Janeiro é a primeira
cidade brasileira a viver em
estado de guerra urbana. Sem
providências urgentes, virão outras; violência é doença contagiosa. É difícil aceitar essa constatação porque não chegamos à situação atual de ontem para hoje. O
poder paralelo do crime se instalou gradativamente nas principais cidades, no vácuo dos equívocos sociais imperdoáveis que
cometemos ao longo dos anos.
Além disso, é aterrador admitirmos a hipótese de estarmos em
pleno conflito armado nas cidades em que criamos nossos filhos.
Mas é preciso ser realista!
Se não pudermos atribuí-los à
situação de guerra, como classificaríamos os acontecimentos ocorridos noites atrás com os passageiros do ônibus Niterói-São Paulo, jogados no chão enquanto
bandidos do Comando Vermelho
em protesto contra a transferência de um de seus líderes atiravam à esmo para dentro do veículo durante quase meia hora,
agressão que só terminou quando
outros traficantes, membros do
arqui-rival Terceiro Comando,
resolveram acabar com a impunidade dos inimigos?
Na Palestina ocupada, reconheçamos, há inúmeros dias mais
calmos do que as noites cariocas
da semana passada. Os eventos
dramáticos vividos em nossa cidade-cartão postal, amplamente
divulgados pelas televisões daqui
e do exterior, não ajudam nossa
frágil economia num mercado
mundial de investidores cada dia
mais assustados.
O impacto causado pelas imagens da tragédia carioca talvez
sirva para nos tirar do marasmo e
nos ajudar a adotar estratégias
mais abrangentes de combate à
violência.
Afinal, a experiência prévia
com movimentos sociais que resultaram em saltos qualitativos
nas condições de vida dos povos
deixa claro que o catalisador
mais importante nessas ocasiões é
a percepção de que existe uma
crise.
E em nosso caso não há como
negar que estejamos em crise! Temos uma legião de adolescentes
na periferia do tecido social que
se enquadra nos quatro principais fatores de risco para desenvolver comportamento violento:
foram abusados ou negligenciados na primeira infância, atravessaram a puberdade sem disciplina nem valores morais altruísticos, conviveram com pares violentos e frequentaram escolas precárias.
Manter milhões de crianças
nessa situação de risco é zombar
do perigo! Ou nos dedicamos à tarefa de encontrar um futuro produtivo para elas ou haja dinheiro
para construir presídios e contratar homens para caçá-las em seus
esconderijos.
Ao lado desse trabalho social,
algumas medidas práticas precisam ser tomadas imediatamente.
A primeira é parar de fingir que é
possível ter policiais empenhados
na defesa da sociedade por um salário que os obriga a morar com a
família nas favelas, ao lado dos
criminosos que supostamente deveriam combater.
A segunda é encarar a realidade de que o tráfico de drogas está
intimamente ligado a uma banda
da polícia: as bocas de fumo são
pontos comerciais. Se os usuários
de drogas -e até pessoas que não
as usam- sabem em que esquina
funcionam, só os policiais são ingênuos? Sem salários dignos, treinamento, armas modernas, respeito profissional e punições
exemplares para os malcomportados jamais poderemos confiar
na polícia.
Mas a corrupção dos maus policiais é apenas um lado da questão; menor, diga-se de passagem.
Nos lucros do tráfico, a parte do
leão fica com os executivos do
mercado financeiro responsáveis
pela lavagem do dinheiro e com o
departamento jurídico das quadrilhas, teia envolvente formada
por advogados contratados, políticos financiados e autoridades
judiciárias subornadas.
A corrupção de costumes inerente ao negócio com as drogas
está alicerçada na lei da oferta e
da procura, princípio básico das
ciências econômicas. Como acabar com o comércio de um produto quando os consumidores estão
dispostos a pagar os olhos da cara
por ele?
Só há duas alternativas para
enfrentar tal vantagem mercadológica: legalizarmos as drogas ilícitas e nos prepararmos para lidar com as consequências do aumento do número de usuários
(como aconteceu com o álcool e
com o fumo) ou reduzirmos o
consumo delas; convencermos o
maior número possível de adolescentes de que usar maconha, cola,
cocaína, ecstasy, heroína, faz mal
à saúde, desagrega a família e está fora de moda.
Apesar de insignificantes em relação às dimensões do problema,
vários trabalhos de campo comprovam a existência de intervenções eficazes na prevenção ao uso
de drogas e de profissionais bem
preparados para aplicá-las
-muitos dos quais no serviço público. A implantação imediata
em larga escala desses programas
educacionais é apenas questão de
vontade política.
Programas de prevenção planejados cientificamente, sem interferências políticas nefastas, com a
participação imprescindível dos
meios de comunicação de massa,
motivariam a população e não teriam dificuldade para obter financiamento de organizações internacionais. Mesmo que consigamos empolgar a sociedade com
a idéia de combater as drogas e o
crime, no entanto, os resultados
virão somente a médio prazo.
Não há milagre capaz de nos salvar em pouco tempo.
Mesmo porque a luta contra a
violência passa obrigatoriamente
pelo planejamento familiar, tabu
intocável entre nós. País nenhum
consegue viver em paz quando
dez milhões de crianças (quase a
população do Chile) vivem em lares sustentados exclusivamente
por milhões que ganham menos
do que dois salários mínimos.
Enquanto continuar a nascer
descontroladamente esse exército
de mal-afortunados, dependentes
da boa vontade alheia para alimentos, escolas, postos de saúde,
hospitais, empregos, habitação e
construção de cadeias, não faltarão soldados ao crime organizado.
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