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São Paulo, sábado, 08 de março de 2003

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DRAUZIO VARELLA

Da janela vê-se o Corcovado e o Redentor

O Rio de Janeiro é a primeira cidade brasileira a viver em estado de guerra urbana. Sem providências urgentes, virão outras; violência é doença contagiosa. É difícil aceitar essa constatação porque não chegamos à situação atual de ontem para hoje. O poder paralelo do crime se instalou gradativamente nas principais cidades, no vácuo dos equívocos sociais imperdoáveis que cometemos ao longo dos anos.
Além disso, é aterrador admitirmos a hipótese de estarmos em pleno conflito armado nas cidades em que criamos nossos filhos. Mas é preciso ser realista!
Se não pudermos atribuí-los à situação de guerra, como classificaríamos os acontecimentos ocorridos noites atrás com os passageiros do ônibus Niterói-São Paulo, jogados no chão enquanto bandidos do Comando Vermelho em protesto contra a transferência de um de seus líderes atiravam à esmo para dentro do veículo durante quase meia hora, agressão que só terminou quando outros traficantes, membros do arqui-rival Terceiro Comando, resolveram acabar com a impunidade dos inimigos?
Na Palestina ocupada, reconheçamos, há inúmeros dias mais calmos do que as noites cariocas da semana passada. Os eventos dramáticos vividos em nossa cidade-cartão postal, amplamente divulgados pelas televisões daqui e do exterior, não ajudam nossa frágil economia num mercado mundial de investidores cada dia mais assustados.
O impacto causado pelas imagens da tragédia carioca talvez sirva para nos tirar do marasmo e nos ajudar a adotar estratégias mais abrangentes de combate à violência.
Afinal, a experiência prévia com movimentos sociais que resultaram em saltos qualitativos nas condições de vida dos povos deixa claro que o catalisador mais importante nessas ocasiões é a percepção de que existe uma crise.
E em nosso caso não há como negar que estejamos em crise! Temos uma legião de adolescentes na periferia do tecido social que se enquadra nos quatro principais fatores de risco para desenvolver comportamento violento: foram abusados ou negligenciados na primeira infância, atravessaram a puberdade sem disciplina nem valores morais altruísticos, conviveram com pares violentos e frequentaram escolas precárias.
Manter milhões de crianças nessa situação de risco é zombar do perigo! Ou nos dedicamos à tarefa de encontrar um futuro produtivo para elas ou haja dinheiro para construir presídios e contratar homens para caçá-las em seus esconderijos.
Ao lado desse trabalho social, algumas medidas práticas precisam ser tomadas imediatamente. A primeira é parar de fingir que é possível ter policiais empenhados na defesa da sociedade por um salário que os obriga a morar com a família nas favelas, ao lado dos criminosos que supostamente deveriam combater.
A segunda é encarar a realidade de que o tráfico de drogas está intimamente ligado a uma banda da polícia: as bocas de fumo são pontos comerciais. Se os usuários de drogas -e até pessoas que não as usam- sabem em que esquina funcionam, só os policiais são ingênuos? Sem salários dignos, treinamento, armas modernas, respeito profissional e punições exemplares para os malcomportados jamais poderemos confiar na polícia.
Mas a corrupção dos maus policiais é apenas um lado da questão; menor, diga-se de passagem. Nos lucros do tráfico, a parte do leão fica com os executivos do mercado financeiro responsáveis pela lavagem do dinheiro e com o departamento jurídico das quadrilhas, teia envolvente formada por advogados contratados, políticos financiados e autoridades judiciárias subornadas.
A corrupção de costumes inerente ao negócio com as drogas está alicerçada na lei da oferta e da procura, princípio básico das ciências econômicas. Como acabar com o comércio de um produto quando os consumidores estão dispostos a pagar os olhos da cara por ele?
Só há duas alternativas para enfrentar tal vantagem mercadológica: legalizarmos as drogas ilícitas e nos prepararmos para lidar com as consequências do aumento do número de usuários (como aconteceu com o álcool e com o fumo) ou reduzirmos o consumo delas; convencermos o maior número possível de adolescentes de que usar maconha, cola, cocaína, ecstasy, heroína, faz mal à saúde, desagrega a família e está fora de moda.
Apesar de insignificantes em relação às dimensões do problema, vários trabalhos de campo comprovam a existência de intervenções eficazes na prevenção ao uso de drogas e de profissionais bem preparados para aplicá-las -muitos dos quais no serviço público. A implantação imediata em larga escala desses programas educacionais é apenas questão de vontade política.
Programas de prevenção planejados cientificamente, sem interferências políticas nefastas, com a participação imprescindível dos meios de comunicação de massa, motivariam a população e não teriam dificuldade para obter financiamento de organizações internacionais. Mesmo que consigamos empolgar a sociedade com a idéia de combater as drogas e o crime, no entanto, os resultados virão somente a médio prazo. Não há milagre capaz de nos salvar em pouco tempo.
Mesmo porque a luta contra a violência passa obrigatoriamente pelo planejamento familiar, tabu intocável entre nós. País nenhum consegue viver em paz quando dez milhões de crianças (quase a população do Chile) vivem em lares sustentados exclusivamente por milhões que ganham menos do que dois salários mínimos.
Enquanto continuar a nascer descontroladamente esse exército de mal-afortunados, dependentes da boa vontade alheia para alimentos, escolas, postos de saúde, hospitais, empregos, habitação e construção de cadeias, não faltarão soldados ao crime organizado.


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