São Paulo, quarta-feira, 08 de março de 2006

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CARTAS DA EUROPA

Mensagem imaginária a um jovem esteta

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Meu caro Amigo,
Obrigado pela sua carta.
Recebi hoje de manhã e fui lendo durante o dia. Sou bicho de compreensão lenta, mas de infinita bondade. Vou responder a todas as suas perguntas, uma por uma, e no final você envia o cheque. Brinco. Não brinco. Quero mesmo esse cheque. Sim, Rilke tinha vícios baratos.
Pergunta-me você, com sereno entusiasmo, se assisti ao Oscar do passado domingo. Entendo. O Oscar é o acontecimento midiático do ano. Diretor que é diretor teve, ou tem, a estatueta sobre o armário. Como Capra, que ganhou três. Ou John Ford, de quem ambos gostamos, com quatro. Mas não se esqueça de todos aqueles que morreram sem igual prazer. Citar Fellini ou Bergman seria demasiado fácil: europeus não entram na contagem, certo? Isso também é válido para Fellini, indicado quatro vezes e quatro vezes recusado. Mas o que dizer de Chaplin ou Hawks, indicados uma única vez e ganhadores nenhuma vez? Para não citar Hitchcock (ou King Vidor), que passaram cinco vezes pela passadeira vermelha e voltaram para casa. De mãos vazias.
O problema, porém, é mais fundo. Não assisti ao Oscar porque, confissão pessoal, nunca fui entusiasta de "filmes políticos". Você conhece o gênero: filmes sobre temas "importantes" que conferem um PhD instantâneo a qualquer analfabeto que entre na sala de cinema. Só este ano, vários conhecidos meus fizeram doutorado em história do Oriente Médio (depois de "Syriana" ou "Munique") e um deles tirou mestrado em jornalismo (infelizmente, adormeceu no meio da exibição de "Capote"). Eu entendo: num tempo em que ler é uma perda de tempo, nada melhor do que a ilusão de que um filme confere sabedoria necessária para entender o mundo.
Infelizmente, não confere. "Boa Noite e Boa Sorte" é filme competente sobre a perseguição aos comunistas na década de 50? Sem dúvida. Mas seria desnecessário que George Clooney apresentasse Annie Moss como faxineira débil e semiletrada perante a inquisição de McCarthy. Annie Moss era membro do PC. Mesmo. Não que isso retire indignidade às perseguições de McCarthy. Mas fatos são fatos.
E, por falar em fatos, entendo a mensagem simpática de "Munique": não devemos responder ao terrorismo com as práticas próprias dos terroristas. Mas, pergunto ainda, será legítimo colocar no mesmo plano terroristas que matam civis (como nos Jogos Olímpicos de 1972) e agentes policiais que matam terroristas?
Sobre os caubóis gays, nenhum comentário: só um inocente acredita que uma história entre dois homens continua a ser, hoje, o amor que não ousa dizer o seu nome. Pelo contrário: é um amor que não se cala, 24 horas sobre 24 horas, sete dias por semana. Ah, sobra "Crash", denúncia anti-racista que ganhou o Oscar da noite. Uma confissão a respeito: eu preferiria ser imigrante nos Estados Unidos do que em qualquer outra parte do mundo. Europa inclusa.
Mas a arte "política" não é apenas simplificadora e ignara. Ela acaba por morrer com o seu tempo porque, precisamente, ela é incapaz de suplantar o seu tempo. Eu acredito que "Os Melhores Anos de Nossas Vidas", Oscar em 1946, seja um documento tocante e pacifista sobre o regresso dos soldados americanos depois da Segunda Guerra. Mas eu aposto que, todos os Natais, não é o filme de Wyler que você gosta de rever na TV, é "A Felicidade Não se Compra", de Capra, que aliás perdeu o Oscar para Wyler no mesmo ano.
Eu sei que "No Calor da Noite", vencedor em 1967, é uma denúncia "corajosa" e "necessária" (é assim, não é?) da tensão racial nos Estados Unidos. Mas, aqui entre nós, não é mil vezes preferível rever "A Primeira Noite de um Homem", perdedor no mesmo ano, com uma Anne Bancroft que inicia Dustin Hoffman nos seculares prazeres da cama? Aposto que todas as amigas da sua mãe ganharam a seus olhos outros contornos. Mais, digamos, humanos. Confesse, confesse.
Meu caro amigo: a grande arte não vive de Bush, do petróleo árabe ou da martirologia gay que faz as delícias das brigadas. A grande arte não vive do ruído que vem, do ruído que passa. A grande arte vive do que é permanente e, se me permite, só a natureza humana é permanente. É com ela que você terá de lidar. Para que, daqui a uns anos, eu possa ler e reler a sua prosa pela manhã. Como se fosse a primeira vez.
Um abraço imaginário,
João


Colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações, João Pereira Coutinho escreve às quartas-feiras neste espaço

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