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Crítica/"O Senhor das Almas"
Romance sobre imigrante mantém força e desconforto
Obra de Irène Némirovsky é misto de naturalismo, expressionismo e fábula
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Passados quase 70 anos,
este romance irregular
-dotado de grande força mas também de deficiências,
misto de naturalismo, expressionismo e fábula- conserva o
desconforto embutido de
quando veio a público no periódico "Gringoire", pouco antes
do início da Segunda Guerra.
O mal-estar em parte se explica pela igual medida de excelência e mediocridade que a
obra contém -excelência pela
forma violenta com que trata o
tema principal, o preconceito, e
mediocridade pelo modo como
cede às tintas do folhetim, sobretudo do meio para o fim. O
leitor fica na dúvida se está
diante de uma criação genial ou
de algo que poderia ter sido brilhante, mas se mostra irremediavelmente falho.
Mas a razão principal desse
desconforto reside na ambigüidade intrínseca ao protagonista, Dario Asfar, um imigrante
pobre na França dos anos 1920
e 30 que, faustianamente, vende a alma para ser acolhido na
sociedade que o despreza, um
médico que se torna charlatão,
lobo entre os lobos, um crápula
vil que não hesita em mentir,
manipular, trapacear. E também, mas não abertamente,
Dario é judeu.
A questão espinhosa fez com
que os editores franceses sentissem a necessidade de incluir
um prefácio abalizado na atual
edição, defendendo a autora.
É preciso que se diga que Irène Némirovsky não só era uma
emigrada russa de origem judia
(sua família era rica, ao contrário da de seu personagem), como também foi deportada para
Auschwitz, onde a autora morreu de tifo.
"Ódio do reflexo de si"
Para Olivier Philipponnat e
Patrick Lienhardt, também autores de uma biografia de Irène,
este "livro terrível, obstinado,
apressado" representa menos
uma instância de "ódio de si" do
que de "ódio do reflexo de si".
Dario não é mau, mas incorpora a maldade que os outros
lhe atribuem. Em vez de pintar
um retrato lisonjeiro ou condescendente, a autora permite
que o herói sucumba à hostilidade que lhe infligem. Como
Shylock, o usurário de Shakespeare, Asfar poderia ter dito:
"Se vocês nos ultrajam, será
que não nos vingaremos?".
A bem da verdade, no romance, Asfar não é em nenhum momento definido como judeu (ao
contrário de sua doce esposa,
Clara). A inferência se dá por
aproximação. Suas características -como o fato de ser um
"meteco" (termo pejorativo
usado para os imigrantes) da
Criméia, cuja aparência e cujo
sotaque despertam a desconfiança na França mergulhada
no ódio racial- combinam com
a situação dos refugiados judeus, provenientes da Ásia Menor e do Leste Europeu, pintados como "selvagens" pela imprensa de então.
Asfar ressente-se da xenofobia como da bondade que ele só
enxerga nos outros, os "europeus" da alta roda. "Ah, vocês
são os filhos da luz! Só têm paixões nobres", diz o médico à caridosa mulher de um magnata
sem escrúpulos.
Ele não percebe que, do seu
lado, encontra-se o mais rematado exemplo de bondade e abnegação, o de sua esposa. O
amor que Clara lhe devota, na
pobreza e na maldade, é muito
mais comovente do que a benevolência empertigada da francesa. Mas Asfar foi doutrinado
a ver a virtude só do outro lado.
Essa é sua tragédia. E apenas
uma linha muito tênue separa-a da intolerância que a gerou.
O SENHOR DAS ALMAS
Autora: Irène Némirovsky
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 43 (232 págs.)
Avaliação: bom
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