São Paulo, sábado, 08 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"O Senhor das Almas"

Romance sobre imigrante mantém força e desconforto

Obra de Irène Némirovsky é misto de naturalismo, expressionismo e fábula

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Passados quase 70 anos, este romance irregular -dotado de grande força mas também de deficiências, misto de naturalismo, expressionismo e fábula- conserva o desconforto embutido de quando veio a público no periódico "Gringoire", pouco antes do início da Segunda Guerra.
O mal-estar em parte se explica pela igual medida de excelência e mediocridade que a obra contém -excelência pela forma violenta com que trata o tema principal, o preconceito, e mediocridade pelo modo como cede às tintas do folhetim, sobretudo do meio para o fim. O leitor fica na dúvida se está diante de uma criação genial ou de algo que poderia ter sido brilhante, mas se mostra irremediavelmente falho.
Mas a razão principal desse desconforto reside na ambigüidade intrínseca ao protagonista, Dario Asfar, um imigrante pobre na França dos anos 1920 e 30 que, faustianamente, vende a alma para ser acolhido na sociedade que o despreza, um médico que se torna charlatão, lobo entre os lobos, um crápula vil que não hesita em mentir, manipular, trapacear. E também, mas não abertamente, Dario é judeu.
A questão espinhosa fez com que os editores franceses sentissem a necessidade de incluir um prefácio abalizado na atual edição, defendendo a autora.
É preciso que se diga que Irène Némirovsky não só era uma emigrada russa de origem judia (sua família era rica, ao contrário da de seu personagem), como também foi deportada para Auschwitz, onde a autora morreu de tifo.

"Ódio do reflexo de si"
Para Olivier Philipponnat e Patrick Lienhardt, também autores de uma biografia de Irène, este "livro terrível, obstinado, apressado" representa menos uma instância de "ódio de si" do que de "ódio do reflexo de si".
Dario não é mau, mas incorpora a maldade que os outros lhe atribuem. Em vez de pintar um retrato lisonjeiro ou condescendente, a autora permite que o herói sucumba à hostilidade que lhe infligem. Como Shylock, o usurário de Shakespeare, Asfar poderia ter dito: "Se vocês nos ultrajam, será que não nos vingaremos?".
A bem da verdade, no romance, Asfar não é em nenhum momento definido como judeu (ao contrário de sua doce esposa, Clara). A inferência se dá por aproximação. Suas características -como o fato de ser um "meteco" (termo pejorativo usado para os imigrantes) da Criméia, cuja aparência e cujo sotaque despertam a desconfiança na França mergulhada no ódio racial- combinam com a situação dos refugiados judeus, provenientes da Ásia Menor e do Leste Europeu, pintados como "selvagens" pela imprensa de então.
Asfar ressente-se da xenofobia como da bondade que ele só enxerga nos outros, os "europeus" da alta roda. "Ah, vocês são os filhos da luz! Só têm paixões nobres", diz o médico à caridosa mulher de um magnata sem escrúpulos.
Ele não percebe que, do seu lado, encontra-se o mais rematado exemplo de bondade e abnegação, o de sua esposa. O amor que Clara lhe devota, na pobreza e na maldade, é muito mais comovente do que a benevolência empertigada da francesa. Mas Asfar foi doutrinado a ver a virtude só do outro lado.
Essa é sua tragédia. E apenas uma linha muito tênue separa-a da intolerância que a gerou.


O SENHOR DAS ALMAS
Autora:
Irène Némirovsky
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 43 (232 págs.)
Avaliação: bom


Texto Anterior: Saiba mais: Nova Fronteira diz que aguarda inédito do autor
Próximo Texto: Crítica/"O Diabo Mesquinho": Escritor pouco conhecido cria mundo sinistro de sabor popular
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.