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ANTONIO CICERO
Comunidade e sociedade
Família, pátria, tradições e religiões foram, de fato, atropeladas pelo sistema capitalista
EM ENTREVISTA recente à
"Nouvel Observateur", Edgar
Morin explica por que, embora já conhecesse a natureza totalitária do regime soviético desde 1948,
só saiu do Partido Comunista Francês quando expulso, em 1951: "Eu tinha uma necessidade psicopatológica de amor, de fraternidade, de comunidade e não ousava romper o
cordão umbilical".
Amor, fraternidade, comunidade:
isso me lembra a definição de "comunidade" do economista alemão
Werner Sombart: "União [...] cujo laço é livre de tudo o que é estrangeiro,
de toda finalidade prática, de toda
negociata, de toda racionalidade, de
todo caráter terrestre, para se fundar exclusivamente no amor". Nesse contexto, a palavra fraternidade
só não ocorre por acaso, pois estaria
em casa. Pois bem, essa definição se
encontra no livro "Socialismo Alemão" (1934), em que Sombart flerta
com o nacional-socialismo.
Essa definição se baseia, é claro,
na famosa oposição, vital para a sociologia clássica alemã, entre "Gemeinschaft" e "Gesellschaft", isto é,
entre comunidade e sociedade.
A comunidade supõe encontrar
sua origem na grande família, que se
estende até a nação ou a "pátria" e
tem por horizonte a religião positiva, herdada dos antepassados. Os
membros da comunidade, articulados hierarquicamente de modo pretensamente orgânico e natural,
crêem cultivar entre si relações pessoais e cooperativas, enraizadas numa cultura particular e tradicional.
A própria palavra "cultura", aliás, liga-se etimologicamente ao trabalho
com a terra e ao culto religioso.
Já a sociedade tem como protótipo a grande cidade. Nela, os indivíduos se agregam de modo mecânico
e arbitrário e tendem a se relacionar
de maneira impessoal e contratual.
Ela tem como horizonte o princípio
racional, formal e negativo segundo
o qual a limitação da liberdade de
uma pessoa não é lícita senão enquanto necessária para tornar essa
liberdade compatível com igual liberdade alheia. Tal é o princípio universal da civilização.
Na sociedade, fora dos círculos familiares restritos, as relações pessoais de caráter comunitário que
tendem a prevalecer são aquelas em
que cada um ingressa voluntariamente, e não aquelas de que cada
um participa a despeito de sua vontade, como as de parentesco e vizinhança. Hoje, a internet leva mais
longe esse progresso das relações
societárias. O internauta é capaz de
ignorar os seus vizinhos reais para
estabelecer, num lugar virtual, relações comunitárias com pessoas que
nunca viu diretamente, mas que, do
outro lado do mundo, tenham o
mesmo interesse pontual que ele.
Evidentemente, o mundo moderno se identifica com a sociedade. A
família, a pátria, as tradições, as religiões foram, de fato (como comemoram Marx e Engels no "Manifesto
Comunista"), atropeladas pelo capitalismo. Entretanto, essas instituições e/ou mitos do passado não
morreram, e permanece entre muitos a nostalgia por uma época em
que o mundo, constituído por comunidades mais ou menos fechadas, não tendia à sociedade aberta.
Para tais nostálgicos do "ancien régime", a sociedade desenraizada, cada vez mais composta de indivíduos
hedonistas, representa o ápice da
desagregação, da decadência.
Na Alemanha, o sonho reacionário da comunidade nacional unida
por tradição, sangue, terra e língua
foi cultivado pelo nazismo, que, paradoxalmente, não hesitou em usar
a mais moderna tecnologia para tentar realizá-lo. Não admira que, em
oposição ao individualismo "burguês", o nazismo glorificasse a guerra, em que os indivíduos são capazes
de morrer pela comunidade, confirmando que esta é a verdadeira substância e aqueles, meros acidentes.
Para Sombart, a era do capitalismo e do socialismo proletário chegara ao fim com a instauração da comunidade nacional-socialista.
Hoje, a mesma glorificação da
morte em nome da comunidade
-agora mais religiosa do que nacional- na guerra contra o melhor da
modernidade, que é a sociedade
aberta, vigora entre os defensores da
Jihad. Por outro lado, aproveitando
o ataque terrorista de fundamentalistas muçulmanos, o governo Bush
também promoveu a guerra e, em
nome dos valores comunitários do
patriotismo e do cristianismo evangélico, fez tudo o que pôde para solapar os fundamentos legais da sociedade aberta e dos direitos individuais nos Estados Unidos.
Hoje, sabendo a que podem levar
tais delírios reacionários, não temos
desculpa para ignorar a ameaça que
ainda representam. Temos a responsabilidade de lutar contra eles
onde quer que se manifestem.
Voltarei a Edgar Morin.
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