São Paulo, sexta-feira, 08 de abril de 2011

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OPINIÃO

Embargo a lançamento faz da obra uma vítima da mesma hipocrisia que narra


NÃO IMPORTA MUITO APELAR A ARGUMENTOS DE AUTORIDADE. QUALQUER FILME É UM DOCUMENTO DO MOMENTO EM QUE É FEITO


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em "Amor Estranho Amor", a ação se passa num bordel de luxo mantido por madame Laura (Íris Bruzzi), que, entre as suas protegidas, tem Vera Fischer (Ana) e Xuxa. Nesse bordel passará uns dias o menino Hugo, filho de Ana.
O orgulho da casa, no momento, é Tâmara (Xuxa), a jovem prometida ao político Benício, que logo chega ao local para resolver problemas nacionais e sexuais.
Xuxa é, hoje, a raiz da discórdia e o motivo do sumiço do filme, já que, nos anos 1990, conseguiu interditar sua saída em vídeo. Como se tratava de uma fita nacional, ninguém veio lutar pela liberdade de expressão.
No filme, ela era um chamariz tanto para Benício como para o público. Walter Khouri era mestre nesse expediente: usar uma atriz (ou modelo) em voga para atrair público. Em 1982, quando fez o filme, Xuxa era essa pessoa, por conta de uma ligação com Pelé.
Na época, diga-se, as atrizes apareciam nuas nos filmes, isso não era um problema. Os tempos mudaram. Hoje, se as moças do bordel seduzissem o jovem Hugo, como no filme, seriam processadas por pedofilia.
No lado feminino, o filme tinha, além de Fischer, Bruzzi e Xuxa, um grupo de atrizes menos famosas, mas não menos interessantes, como as ótimas Sandra Graffi e Vanessa. O elenco masculino não ficava atrás, com Walter Forster, Tarcísio Meira, Mauro Mendonça.
Esse belo grupo ocupa basicamente uma fantástica casa em São Paulo, onde se passa ação, em 1937, durante o golpe do Estado Novo.
É certo que não vem ao caso usar como alegação o valor estético do filme, na tentativa de romper o embargo que pesa sobre ele.
Claro que tem valor, mas não importa muito apelar a argumentos de autoridade (o diretor ilustre, o elenco etc.). Qualquer filme é um documento relevante do momento em que é feito.

VALOR HISTÓRICO
De todos, o mais relevante, hoje, é a aproximação entre um momento histórico (implantação do Estado Novo) e nossos usos e costumes sexuais. E hoje sabe-se bem a importância dos bordéis na história política pátria: é de valor histórico que se trata.
Em inúmeros casos, não apenas no cinema, a Justiça tem se tornado um obstáculo à circulação de bens culturais. No caso de "Amor, Estranho Amor", a interdição se deu por Xuxa considerar justo preservar sua imagem de "rainha dos baixinhos": talvez não fosse de bom tom vê-la num bordel.
Cuidado talvez excessivo, que não existia quando aceitou o papel de Tâmara, mesmo porque ele convinha a uma jovem atriz cujo principal atributo era ter posado nua em revista masculina, e quando trabalhar com Khouri significava, sim, prestígio.
Jogado para baixo do tapete, esse momento de sua vida artística (talvez o melhor) acaba vítima da mesma hipocrisia que divide nossa vida sexual e política entre o bordel e o lar, a rua e o santuário, o secreto (indecoroso) e o público (pomposo). Partição de que a arte procura, em geral, escapar.


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