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Arthur Omar mostra o lado oposto a 'Central do Brasil'
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Não vou fazer aqui o papel
de crítico chato, apontando as
falhas (vi algumas, mas posso
estar errado) de "Central do
Brasil". O filme de Walter Salles Jr. deixou de ser um simples
filme, é um fenômeno social.
Multidões aplaudem e choram, choram copiosamente, a
cada sessão. O "Titanic" é um
naufrágio em copo d'água perto das inundações emocionais
de "Central do Brasil".
Chora-se pelo menino, chora-se por Fernanda Montenegro, chora-se pelo pai, pela
mãe, pelo irmão do menino,
chora-se pelo povo, chora-se
pelo sertão, chora-se pelo Brasil, chora-se pelo urso de Berlim, choramos todos por todos
nós.
É um choro feliz. "Central do
Brasil" investe numa descoberta horizontal, a de um país
que, pelo próprio abandono,
encontra forças em si mesmo,
no próprio coração. Há um
quê de acrítico em tudo isso; o
filme é feito para emocionar
apenas e o faz soberbamente,
com imagens que parecem rasgar a tela, riscos de luz, traços
de manhã, sulcos de chão, ferrovias, estradas, livre curso de
lágrimas.
A tensão dramática do filme
não reproduz a tensão social
brasileira, tal como a entendemos de um ponto de vista clássico. Ou seja, não há ricos contra pobres; não há um eixo
"vertical" orientando a história. O foco da narrativa está
na possibilidade -ou não
-de pessoas da classe baixa se
reconhecerem enquanto
iguais. A utopia do filme se
projeta não mais de acordo
com idéias como "revolução" e
"justiça", mas sim segundo um
evangelho da brasilidade e da
comoção.
Tanto que a única cena de
real conflito do filme -quando Fernanda Montenegro resgata o menino de uma quadrilha de exportadores de crianças -soa artificial, inverossímil. Mas aqui está o crítico a se
mostrar implicante e ranheta.
Viremos a página.
Antes disso, uma última observação. Conversando com
uma antropóloga, que realizava pesquisas na periferia de
São Paulo, fui informado do
seguinte: as organizações locais, as sociedades de amigos
de bairro etc., estavam deixando de tomar o Estado como referência e alvo de suas reivindicações, preferindo organizar-se por si mesmas.
Não é esse o sentido básico de
"Central do Brasil"? A meu
ver, consiste no fato de que, em
tempos de Fernando Henrique,
o exato simétrico do "enrichissez-vous" de Luís Felipe, em
plena ascensão capitalista na
França de 1830, é o "virem-se"
que a classe dominante tucana
dedica a seus eleitores comovidos.
Esse "virem-se" ganha condições de epopéia no filme de
Walter Salles Jr. É como se fosse aceita a irresponsabilidade
absoluta do governo na salvação do país. Choramos pelo
desvalimento dos pobres, pela
capacidade desses mesmos pobres de se virarem por si mesmos, criando suas pequenas
marcenarias, suas modestas
redes de auxílio mútuo, suas
religiões comunitárias.
O choro nos irmana, então,
graças a recursos ficcionais
meio capengas. O filme nos faz
esquecer do Estado. Por um lado, isso é uma qualidade
-autogoverno, pós-populismo
etc. -e por outro lado é defeito: acriticismo, conformismo
diante do "trololó" democrático de FHC, que confia no
abandono dos desvalidos como se fosse um apoio à criatividade da sociedade civil.
Mas, ao contrário do prometido, estou sendo um crítico ranheta. Passemos a outro assunto. Em que momento chorei
no filme?
Chorei quando aparecem os
rostos das pessoas pobres, em
três por quatro, declinando o
endereço do remetente para as
cartas que Fernanda Montenegro punha (ou não punha) no
correio. Há um orgulho imenso, uma veracidade, uma força
afirmativa, uma realidade ingênua e -com perdão da palavra -racial naqueles rostos.
Há um sorriso de dentes tortos,
uma confiança brutalizada,
uma frontalidade de documento lambe-lambe, um... enfim, há um tal Brasil naquilo
tudo, que é tão raro, tão precioso, tão ameaçado, tão próximo e tão distante, que... bem,
tudo foi muito "tão", foi "tanta coisa", que não resisti.
Mas ao mesmo tempo eu tinha comprado o livro "Antropologia da Face Gloriosa" (Cosac e Naify editores), de Arthur
Omar. São umas duzentas páginas de fotos tiradas durante
o Carnaval, focalizando rostos
de gente do povo.
Esse livro é genial, é uma
obra de arte densa, misteriosa,
abissal. Vemos aí o "povo brasileiro" a partir de uma ótica
extrema, apavorante e demoníaca. Não é mais o povo de
"Central do Brasil", capaz de
bons momentos, de solidariedade espontânea e construtiva.
A deformidade, o travestismo, a sedução canalha, a maquiagem carregada, o monstruoso: tudo aparece num registro incompreensível para
nós, ameaçador, completo e
radical. O "povo", aqui, é
aquilo que é realmente: não o
compreendemos, não somos
iguais a ele, tem em si tanto de
ameaça quanto de pacificação.
No excelente ensaio que
acompanha o livro, Ivana Bentes fala da força mitológica,
obscura, desses rostos. A "face
gloriosa" de Arthur Omar corresponde à teoria católica do
"corpo glorioso": aqueles cadáveres que, no paraíso, esperam o dia do Juízo Final para
ressuscitarem plenamente.
Captando "faces gloriosas" no
êxtase demoníaco do Carnaval, Arthur Omar fixou misticamente os rostos predestinados à salvação.
A utopia, aqui, é uma coisa
estranha, feia, à qual os frequentadores do Espaço Unibanco e os que choram no filme de Walter Salles Jr. não têm
acesso. As fotos de "Antropologia da Face Gloriosa" são o negativo de "Central do Brasil".
Projetam uma revolução; algo
de negro, de turvo, de irracional, de xamânico e de justo, de
incompreensível e aterrorizante para nós.
Arthur Omar mexe mais fundo, imerge num território sem
lágrimas, só de suor, esgar, estranheza, frenesi sem correspondência com nosso coração
doméstico. São duas versões,
afinal, do "povo" brasileiro. A
de "Central do Brasil" é conciliadora e emotiva; a outra é áspera, feia, transida de futuro,
de misticismo, de um sangue
que se coagula em fotos que
nos fazem recuar.
Todo crítico terá algo de primeira-dama histérica se preferir, por princípio, o "mais radical", o "mais avançado", o que
houver de "mais vanguarda",
em detrimento da humanidade simpaticíssima de Walter
Salles Jr. Politicamente, até,
me inclino mais em favor de
"Central do Brasil" e simpatizo com a choradeira que provoca e da qual participei. Mas
Arthur Omar, e sua "Antropologia da Face Gloriosa", é outra coisa. Aqui temos algo de
genial; de tão desagradável,
que nos livra de chorar e nos
perturba; de tão bonito, que
nem ficamos contentes de ver;
de tão estranho, que dói em alguma parte do corpo que não
conhecíamos. Aqui, não há
descoberta do Brasil: há o mistério do Brasil, o estranho do
Brasil. Eu prefiro.
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