São Paulo, quarta, 8 de abril de 1998

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Arthur Omar mostra o lado oposto a 'Central do Brasil'

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Não vou fazer aqui o papel de crítico chato, apontando as falhas (vi algumas, mas posso estar errado) de "Central do Brasil". O filme de Walter Salles Jr. deixou de ser um simples filme, é um fenômeno social. Multidões aplaudem e choram, choram copiosamente, a cada sessão. O "Titanic" é um naufrágio em copo d'água perto das inundações emocionais de "Central do Brasil".
Chora-se pelo menino, chora-se por Fernanda Montenegro, chora-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão do menino, chora-se pelo povo, chora-se pelo sertão, chora-se pelo Brasil, chora-se pelo urso de Berlim, choramos todos por todos nós.
É um choro feliz. "Central do Brasil" investe numa descoberta horizontal, a de um país que, pelo próprio abandono, encontra forças em si mesmo, no próprio coração. Há um quê de acrítico em tudo isso; o filme é feito para emocionar apenas e o faz soberbamente, com imagens que parecem rasgar a tela, riscos de luz, traços de manhã, sulcos de chão, ferrovias, estradas, livre curso de lágrimas.
A tensão dramática do filme não reproduz a tensão social brasileira, tal como a entendemos de um ponto de vista clássico. Ou seja, não há ricos contra pobres; não há um eixo "vertical" orientando a história. O foco da narrativa está na possibilidade -ou não -de pessoas da classe baixa se reconhecerem enquanto iguais. A utopia do filme se projeta não mais de acordo com idéias como "revolução" e "justiça", mas sim segundo um evangelho da brasilidade e da comoção.
Tanto que a única cena de real conflito do filme -quando Fernanda Montenegro resgata o menino de uma quadrilha de exportadores de crianças -soa artificial, inverossímil. Mas aqui está o crítico a se mostrar implicante e ranheta. Viremos a página.
Antes disso, uma última observação. Conversando com uma antropóloga, que realizava pesquisas na periferia de São Paulo, fui informado do seguinte: as organizações locais, as sociedades de amigos de bairro etc., estavam deixando de tomar o Estado como referência e alvo de suas reivindicações, preferindo organizar-se por si mesmas.
Não é esse o sentido básico de "Central do Brasil"? A meu ver, consiste no fato de que, em tempos de Fernando Henrique, o exato simétrico do "enrichissez-vous" de Luís Felipe, em plena ascensão capitalista na França de 1830, é o "virem-se" que a classe dominante tucana dedica a seus eleitores comovidos.
Esse "virem-se" ganha condições de epopéia no filme de Walter Salles Jr. É como se fosse aceita a irresponsabilidade absoluta do governo na salvação do país. Choramos pelo desvalimento dos pobres, pela capacidade desses mesmos pobres de se virarem por si mesmos, criando suas pequenas marcenarias, suas modestas redes de auxílio mútuo, suas religiões comunitárias.
O choro nos irmana, então, graças a recursos ficcionais meio capengas. O filme nos faz esquecer do Estado. Por um lado, isso é uma qualidade -autogoverno, pós-populismo etc. -e por outro lado é defeito: acriticismo, conformismo diante do "trololó" democrático de FHC, que confia no abandono dos desvalidos como se fosse um apoio à criatividade da sociedade civil.
Mas, ao contrário do prometido, estou sendo um crítico ranheta. Passemos a outro assunto. Em que momento chorei no filme?
Chorei quando aparecem os rostos das pessoas pobres, em três por quatro, declinando o endereço do remetente para as cartas que Fernanda Montenegro punha (ou não punha) no correio. Há um orgulho imenso, uma veracidade, uma força afirmativa, uma realidade ingênua e -com perdão da palavra -racial naqueles rostos. Há um sorriso de dentes tortos, uma confiança brutalizada, uma frontalidade de documento lambe-lambe, um... enfim, há um tal Brasil naquilo tudo, que é tão raro, tão precioso, tão ameaçado, tão próximo e tão distante, que... bem, tudo foi muito "tão", foi "tanta coisa", que não resisti.
Mas ao mesmo tempo eu tinha comprado o livro "Antropologia da Face Gloriosa" (Cosac e Naify editores), de Arthur Omar. São umas duzentas páginas de fotos tiradas durante o Carnaval, focalizando rostos de gente do povo.
Esse livro é genial, é uma obra de arte densa, misteriosa, abissal. Vemos aí o "povo brasileiro" a partir de uma ótica extrema, apavorante e demoníaca. Não é mais o povo de "Central do Brasil", capaz de bons momentos, de solidariedade espontânea e construtiva.
A deformidade, o travestismo, a sedução canalha, a maquiagem carregada, o monstruoso: tudo aparece num registro incompreensível para nós, ameaçador, completo e radical. O "povo", aqui, é aquilo que é realmente: não o compreendemos, não somos iguais a ele, tem em si tanto de ameaça quanto de pacificação.
No excelente ensaio que acompanha o livro, Ivana Bentes fala da força mitológica, obscura, desses rostos. A "face gloriosa" de Arthur Omar corresponde à teoria católica do "corpo glorioso": aqueles cadáveres que, no paraíso, esperam o dia do Juízo Final para ressuscitarem plenamente. Captando "faces gloriosas" no êxtase demoníaco do Carnaval, Arthur Omar fixou misticamente os rostos predestinados à salvação.
A utopia, aqui, é uma coisa estranha, feia, à qual os frequentadores do Espaço Unibanco e os que choram no filme de Walter Salles Jr. não têm acesso. As fotos de "Antropologia da Face Gloriosa" são o negativo de "Central do Brasil". Projetam uma revolução; algo de negro, de turvo, de irracional, de xamânico e de justo, de incompreensível e aterrorizante para nós.
Arthur Omar mexe mais fundo, imerge num território sem lágrimas, só de suor, esgar, estranheza, frenesi sem correspondência com nosso coração doméstico. São duas versões, afinal, do "povo" brasileiro. A de "Central do Brasil" é conciliadora e emotiva; a outra é áspera, feia, transida de futuro, de misticismo, de um sangue que se coagula em fotos que nos fazem recuar.
Todo crítico terá algo de primeira-dama histérica se preferir, por princípio, o "mais radical", o "mais avançado", o que houver de "mais vanguarda", em detrimento da humanidade simpaticíssima de Walter Salles Jr. Politicamente, até, me inclino mais em favor de "Central do Brasil" e simpatizo com a choradeira que provoca e da qual participei. Mas Arthur Omar, e sua "Antropologia da Face Gloriosa", é outra coisa. Aqui temos algo de genial; de tão desagradável, que nos livra de chorar e nos perturba; de tão bonito, que nem ficamos contentes de ver; de tão estranho, que dói em alguma parte do corpo que não conhecíamos. Aqui, não há descoberta do Brasil: há o mistério do Brasil, o estranho do Brasil. Eu prefiro.




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