São Paulo, quarta-feira, 08 de maio de 2002

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MARCELO COELHO

O problema de um filme sem problemas

Não consegui me envolver muito com "Abril Despedaçado". Pode parecer implicância, coisa de crítico, mas, a meu ver, o problema do novo filme de Walter Salles Jr. é que se trata de um filme sem... problemas, sem nada que se possa apontar como falha, exagero, inverossimilhança, desajuste.
Que inferno! "Abril Despedaçado" até se cuida para não ser bonito demais. Não faz demagogia com a paisagem nordestina, não sentimentaliza "o povo", não estetiza a violência patriarcal. Ainda assim, o filme é como Rodrigo Santoro, seu ator principal: podem sujar seu rosto, fazer com que ele sofra cortando cana, rodar à luz de lamparinas fumacentas, mas não há jeito de enfear o rapaz.
Até aí, trata-se de mera impressão. Temos tanta prática em notar defeitos nos filmes brasileiros, que o impecável talvez seja um pouco frustrante. Sentimos falta de cor local.
A falta de cor local, entretanto, parece resultar de uma intenção deliberada. Baseado num romance do albanês Ismail Kadaré, "Abril Despedaçado" foi filmado no Nordeste brasileiro, mas retrata uma situação de "vendetta" familiar que poderia surgir em qualquer sociedade rústica. Não se quis tratar o tema como se fosse algo específico do sertão nordestino.
Está certo. Senso exacerbado da honra, sede de vingança, poder esmagador da tradição sobre a liberdade individual são coisas comuns em toda parte do mundo. Temos, aliás, a tendência de considerar muitas coisas como sendo tipicamente brasileiras -o jeitinho, o gosto pelos feriados, a ojeriza à impessoalidade, por exemplo-, quando é provável que 90% da humanidade compartilhe dessas mesmas características.
Uma coisa, entretanto, é partir da constatação de um problema concreto, de uma característica regional, de um drama local -o ódio entre duas famílias nordestinas, suponhamos-, confiando que o filme vá ser entendido e reconhecido por espectadores de qualquer país do mundo.
Outra, na minha opinião, é partir da idéia universal, abstrata, etnológica da rivalidade familiar, para daí "encarná-la" numa locação, num cenário, num elenco de atores que calharam de ser brasileiros.
No primeiro caso, teríamos o modelo clássico de uma realidade regional específica que, por isso mesmo, se torna universal. No segundo caso, que é o de "Abril Despedaçado", não acho que se alcance esse resultado estético.
O filme não é universal, é globalizado.
É como se Walter Salles tivesse filmado numa espécie de esperanto cinematográfico, onde valessem os melhores achados do cinema novo, do cinema iraniano, do cinema americano, desde que aparadas todas as arestas, todas as possíveis contradições entre os diversos estilos.
Haveria, talvez, uma saída. O que a história tem de imediatamente reconhecível e genérico -a revolta contra os costumes tradicionais, a denúncia da irracionalidade arcaica, os valores do perdão e da liberdade- poderia ser tratado de forma arquetípica, numa história que apelasse para o mítico, para o fabuloso. Não estranharíamos, desse modo, a fuga da realidade local.
Justamente, "Abril Despedaçado" parecia inclinar-se nessa direção. O irmão mais novo do protagonista é quem começa a narrativa. É um menino de seus 11 anos, esperto, gracioso, que diante do cotidiano brutalizado da família passa o tempo a contar para si mesmo histórias de sereias.
Alguns episódios marcantes do filme -uma ida ao circo, uma brincadeira no balanço, a aparição de uma mulher- tenderiam rumo a esse potencial mítico, capaz de render "magias" cinematográficas à la Spielberg. Claro que "Abril Despedaçado" jamais faria esse tipo de concessão; mas talvez só assim a sua mensagem se sustentasse formalmente.
O Jovem contra o Velho; a Moça do Circo; a Fuga de Casa; a Visão do Mar; a Honra e o Sacrifício: conceitos desse tipo, tratados em chave realista, mas sem especificidade, terminam caindo no clichê.
É como se "Abril Despedaçado" soubesse disso. Algumas dessas idéias encontram uma representação tipicamente hollywoodiana: o beijo apaixonado enquanto desaba a tempestade, os rodopios no trapézio da moça inatingível e, por cima de tudo, a música, mais emocional que emocionante.
Inegavelmente, o cinema brasileiro mostra ter adquirido, aqui, um pleno domínio dessa linguagem "internacional". De certa forma, a trama de "Abril Despedaçado" também simboliza esse feito técnico. Liberado do ramerrão arcaico, da opressão rural, do emperramento daquela velha máquina de moer cana (cujas engrenagens, muitas vezes, lembram as de um projetor), o personagem vai ao encontro da modernidade, dos ares do mundo, assim como o cinema brasileiro se lança ao mercado global sem mais rangidos e solavancos.
Mas é sintomático que, na história do filme, a vitória contra a tradição não seja resultado da revolta do protagonista. A emancipação individual é resultado não de sua luta, e sim de um encadeamento de circunstâncias. O lado mais promissor, mais espontâneo, não é o que vence no final do filme -o que não deixa de vir a propósito para um país que, quanto mais avança na modernidade, menos se emancipa.



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