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MARCELO COELHO
O problema de um filme sem problemas
Não consegui me envolver muito com "Abril Despedaçado". Pode parecer implicância, coisa de crítico, mas, a
meu ver, o problema do novo filme de Walter Salles Jr. é que se
trata de um filme sem... problemas, sem nada que se possa apontar como falha, exagero, inverossimilhança, desajuste.
Que inferno! "Abril Despedaçado" até se cuida para não ser bonito demais. Não faz demagogia
com a paisagem nordestina, não
sentimentaliza "o povo", não estetiza a violência patriarcal. Ainda assim, o filme é como Rodrigo
Santoro, seu ator principal: podem sujar seu rosto, fazer com
que ele sofra cortando cana, rodar à luz de lamparinas fumacentas, mas não há jeito de enfear o
rapaz.
Até aí, trata-se de mera impressão. Temos tanta prática em notar defeitos nos filmes brasileiros,
que o impecável talvez seja um
pouco frustrante. Sentimos falta
de cor local.
A falta de cor local, entretanto,
parece resultar de uma intenção
deliberada. Baseado num romance do albanês Ismail Kadaré,
"Abril Despedaçado" foi filmado
no Nordeste brasileiro, mas retrata uma situação de "vendetta" familiar que poderia surgir em
qualquer sociedade rústica. Não
se quis tratar o tema como se fosse
algo específico do sertão nordestino.
Está certo. Senso exacerbado da
honra, sede de vingança, poder
esmagador da tradição sobre a liberdade individual são coisas comuns em toda parte do mundo.
Temos, aliás, a tendência de considerar muitas coisas como sendo
tipicamente brasileiras -o jeitinho, o gosto pelos feriados, a ojeriza à impessoalidade, por exemplo-, quando é provável que
90% da humanidade compartilhe
dessas mesmas características.
Uma coisa, entretanto, é partir
da constatação de um problema
concreto, de uma característica
regional, de um drama local -o
ódio entre duas famílias nordestinas, suponhamos-, confiando
que o filme vá ser entendido e reconhecido por espectadores de
qualquer país do mundo.
Outra, na minha opinião, é partir da idéia universal, abstrata,
etnológica da rivalidade familiar,
para daí "encarná-la" numa locação, num cenário, num elenco
de atores que calharam de ser
brasileiros.
No primeiro caso, teríamos o
modelo clássico de uma realidade
regional específica que, por isso
mesmo, se torna universal. No segundo caso, que é o de "Abril Despedaçado", não acho que se alcance esse resultado estético.
O filme não é universal, é globalizado.
É como se Walter Salles tivesse
filmado numa espécie de esperanto cinematográfico, onde valessem os melhores achados do cinema novo, do cinema iraniano, do
cinema americano, desde que
aparadas todas as arestas, todas
as possíveis contradições entre os
diversos estilos.
Haveria, talvez, uma saída. O
que a história tem de imediatamente reconhecível e genérico
-a revolta contra os costumes
tradicionais, a denúncia da irracionalidade arcaica, os valores do
perdão e da liberdade- poderia
ser tratado de forma arquetípica,
numa história que apelasse para
o mítico, para o fabuloso. Não estranharíamos, desse modo, a fuga
da realidade local.
Justamente, "Abril Despedaçado" parecia inclinar-se nessa direção. O irmão mais novo do protagonista é quem começa a narrativa. É um menino de seus 11
anos, esperto, gracioso, que diante do cotidiano brutalizado da família passa o tempo a contar para
si mesmo histórias de sereias.
Alguns episódios marcantes do
filme -uma ida ao circo, uma
brincadeira no balanço, a aparição de uma mulher- tenderiam
rumo a esse potencial mítico, capaz de render "magias" cinematográficas à la Spielberg. Claro
que "Abril Despedaçado" jamais
faria esse tipo de concessão; mas
talvez só assim a sua mensagem
se sustentasse formalmente.
O Jovem contra o Velho; a Moça
do Circo; a Fuga de Casa; a Visão
do Mar; a Honra e o Sacrifício:
conceitos desse tipo, tratados em
chave realista, mas sem especificidade, terminam caindo no clichê.
É como se "Abril Despedaçado"
soubesse disso. Algumas dessas
idéias encontram uma representação tipicamente hollywoodiana: o beijo apaixonado enquanto
desaba a tempestade, os rodopios
no trapézio da moça inatingível e,
por cima de tudo, a música, mais
emocional que emocionante.
Inegavelmente, o cinema brasileiro mostra ter adquirido, aqui,
um pleno domínio dessa linguagem "internacional". De certa
forma, a trama de "Abril Despedaçado" também simboliza esse
feito técnico. Liberado do ramerrão arcaico, da opressão rural, do
emperramento daquela velha
máquina de moer cana (cujas engrenagens, muitas vezes, lembram as de um projetor), o personagem vai ao encontro da modernidade, dos ares do mundo, assim
como o cinema brasileiro se lança
ao mercado global sem mais rangidos e solavancos.
Mas é sintomático que, na história do filme, a vitória contra a
tradição não seja resultado da revolta do protagonista. A emancipação individual é resultado não
de sua luta, e sim de um encadeamento de circunstâncias. O lado
mais promissor, mais espontâneo,
não é o que vence no final do filme -o que não deixa de vir a
propósito para um país que,
quanto mais avança na modernidade, menos se emancipa.
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