São Paulo, terça-feira, 08 de maio de 2007

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"Quinto" evangelho reabilita Judas

Assinado pelo romancista Jeffrey Archer e um teólogo, livro nega milagres como transformação de água em vinho

Autores se baseiam em evangelhos canônicos e usam narrador fictício, Benjamin Iscariotes, primogênito de Judas


Reprodução
Detalhe de "O Beijo de Judas', de Giotto, cena de afrescos da capela Scrovegni, em Pádua


EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

Um escritor best seller se une a um acadêmico com boas relações no Vaticano para conceber um quinto evangelho que redime Judas. A ação entre amigos evangelizante resultou no lançamento em março deste ano de "The Gospel According to Judas" (o evangelho segundo Judas), livro de apenas 100 páginas em que Jeffrey Archer -um dos romancistas mais bem-vendidos da Inglaterra- e Frank J. Moloney -respeitado especialista na Bíblia- defendem que Judas não traiu Jesus por 30 moedas de prata nem se enforcou. Morreu crucificado.
A traição, sustentam os autores, aconteceu por diferenças ideológicas entre mestre e apóstolo: Judas teria se decepcionado com Jesus por ele não ter tirado os romanos do poder.
Publicado em nove países simultaneamente, o livro deve chegar ao Brasil até julho, pela editora Bertrand, que tem outros quatro títulos de Archer em catálogo. A edição original é um pastiche de "livro sagrado", com capa que imita textura de couro, páginas com bordas douradas e um marcador com fita de tecido. Segundo os autores, o formato e o conteúdo teriam sido pensados para agradar "leitores do século 21" e soar críveis para "cristãos e judeus do século 1".
Archer e Moloney fazem uma releitura das escrituras sagradas e lançam mão de um expediente ficcional: a trajetória de Jesus -e suas interseções com a de Judas- é narrada por um certo Benjamin Iscariotes, primogênito de Judas. Já no primeiro capítulo o narrador propõe algumas revisões dos quatro evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João, dos quais Archer toma emprestado passagens), afirmando, por exemplo, que Jesus não era um messias, e sim um profeta.
"Achei que era importante escrever um evangelho de um ponto de vista completamente diferente. E como a perspectiva de Judas era mais interessante do que a dos outros 11 apóstolos, a escolha me pareceu fascinante", diz Archer à Folha. "Não creio que o livro reabilite Judas, mas ele mostra a vida de Jesus de um ângulo diferente."
O novo evangelho também sustenta que Jesus não teria feito alguns milagres, como transformar água em vinho ou caminhar sobre a água. Archer diz, no entanto, que não se trata necessariamente de revisionismo. Mas que o seu evangelho, graças à pesquisa séria de Moloney, "permite que os cristãos praticantes reconsiderem alguns mitos que realmente podem ser pouco precisos".
Em nenhum momento, o projeto do livro foi oficialmente abençoado pela igreja. Mas recebeu um empurrãozinho do cardeal Carlo Maria Martini -"rival" de Joseph Ratzinger na sua eleição para o papado-, que apresentou Archer a Moloney. E do arcebispo sul-africano Desmond Tutu, que não só chamou o evangelho de "interessante e plausível", como gravou a versão em áudio.
"Também achamos que o papa leu uma cópia em alemão", conta Archer, para quem Bento 16 é um homem sensato e menos "duro" do que se esperava. "Não sabemos qual a foi a reação dele, mas Moloney teve permissão de falar sobre o livro no Vaticano, e achamos que isto fala por si."

Auto-reabilitação
Anglicano como Tutu, barão, Jeffrey Archer também atuou na política. Foi membro do Parlamento inglês e dirigente do partido Conservador, de Margaret Thatcher e viu sua carreira política degringolar, em 1986, quando o tablóide "Daily Star" publicou uma reportagem segundo a qual Archer teria pago 2.000 libras para uma prostituta. O escritor fabricou um álibi, foi preso em 2001 por perjúrio e obstrução da justiça e libertado em 2003.
A imprensa inglesa torceu o nariz para o projeto do "quinto evangelho", insinuando que se tratava de um projeto de redenção do próprio Archer. O "Times" ironizou, dizendo que o evangelho é uma obra de reabilitação de um autor familiarizado com projetos do gênero. O "Guardian" sugeriu que Archer "permanece inabalado pelos seus anos na prisão" e deve fazer "bem mais do que 30 moedas de prata" com o livro.


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