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BERNARDO CARVALHO
Casa dos escritores
Há semanas divido com uma família de pássaros histéricos o telhado de
uma torre na Toscana
ESTOU NO quarto onde Bruce
Chatwin escreveu partes de
"Colina Negra", considerado
por muitos o seu melhor livro; onde
Colm Tóibin, um hóspede recorrente, escreveu trechos de "O Mestre",
seu romance sobre Henry James;
onde Michael Cunningham escreveu o último capítulo de "Dias
Exemplares". O mesmo quarto que
Zadie Smith incendiou, acidentalmente, com uma dessas espirais para matar mosquito, me informa a
proprietária do lugar, a baronesa
Beatrice von Rezzori Monti della
Corte, ao longo do meu primeiro
jantar, depois de já ter feito o favor
de dirigir a minha atenção a um gato
sentado de costas para nós, imóvel e
em silêncio, camuflado pelo branco
encardido do sofá, com uma orelha
em estado avançado de putrefação,
morrendo.
Descubro, por conta própria, que
Edmund White se fez fotografar para a "Vanity Fair", refestelado, de
óculos e com um livro nas mãos,
dentro da mesma banheira onde tomo banho. Divido com uma família
de pássaros histéricos (ou gambás,
ou morcegos) o telhado de uma torre, na Toscana, diante de um bosque
de carvalhos onde não falta lugar para fazerem seus ninhos.
Tentando me recuperar da visão
do gato moribundo, que eu não teria
percebido sem a intervenção impassível da anfitriã, pergunto se ele não
estaria sofrendo em vão e se não seria melhor... E antes mesmo de eu
poder pronunciar a palavra "sacrificá-lo", a baronesa me interpela do
alto dos seus 80 anos: "Não, é o melhor que podemos fazer por ele. Ele
está feliz por poder morrer entre
nós. É assim também que eu quero
morrer". O gato foi enterrado duas
semanas depois, no jardim.
Faz três semanas desde a primeira
noite, ao chegar, depois de 15 horas
de avião, quando deixei a baronesa
com uma expressão incrédula ao lhe
responder que era alérgico a animais. Ela acabava de me perguntar
justamente se eu gostava deles, enquanto seus três cães de estimação
-de pequeno, médio e grande porte- me cercavam e me lambiam, aos
pulos: "Adoro, sim, mas sou alérgico". Na mesma noite, sonhei que
acordava com o rosto arranhado pelas unhas de um gato, cinco riscos
paralelos, de uma orelha à outra,
passando por cima da boca. E que a
baronesa se fazia de desentendida
quando eu lhe dizia que só podia ter
sido o gato.
Não sei se é por causa do pó, da
primavera ou dos animais, mas nunca espirrei tanto. Como se não bastasse, no final da primeira semana,
despenquei, no meio da noite, da escada que leva do meu quarto no alto
da torre ao banheiro. No dia seguinte, mostrei à baronesa o meu pé direito, que nesse meio-tempo tinha
adquirido a forma de uma enorme
bola roxa, e ela aproveitou para revidar: "Reconheci o hipocondríaco assim que você chegou".
Nos anos 60, Beatrice comandou
uma importante galeria de arte, em
Milão. Expôs alguns dos artistas
americanos mais significativos da
época, como Jasper Johns e Robert
Rauschenberg. Em 1998, depois da
morte do marido, Gregor von Rezzori, escritor de expressão alemã
nascido na Bucovina (atual Romênia) e autor de "Memórias de Um
Anti-Semita", entre outros romances, a baronesa decidiu transformar
a casa do século 15, a 30 km de Florença, em uma fundação. E passou a
receber escritores para retiros de até
seis semanas.
O lugar é mesmo incrível. Não há
como escapar, a não ser fazendo 8
km a pé até a estação de trem mais
próxima, em terreno acidentado,
com longas subidas e descidas. E excentricidade se paga com excentricidade. Há uma semana, a ex-namorada de um sobrinho da baronesa apareceu para jantar com um imenso
tenor coreano, descendente da dinastia que unificou a Coréia na Idade Média. Estavam cruzando a Itália
numa campanha para angariar fundos e apoio oficial para uma exposição polêmica que irá provar que os
coreanos já se serviam de sistemas
de impressão idênticos ao de Gutenberg anos antes de ele aparecer com
a sua Bíblia. O tenor, que só falava
coreano ou italiano, cantou "O Sole
Mio" após o jantar, enquanto um
dos cães latia aos seus pés.
Descobri, tardiamente, que o humor é a voz do desespero. Quando
me convidou para a sua colônia de
escritores, no ano passado, a baronesa perguntou se eu estava preparado. E, inadvertidamente, eu disse
que sim. Agora, quando lhe digo que
não gosto de escritores, ela arregala
os olhos como quem pergunta: Mas,
afinal, se é alérgico a animais e não
gosta de escritores, então você gosta
de quê? Teria sido presunçoso responder com o mais simples e o mais
óbvio: gosto de literatura. É claro
que prefiro ficar calado.
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