São Paulo, terça-feira, 08 de maio de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Casa dos escritores

Há semanas divido com uma família de pássaros histéricos o telhado de uma torre na Toscana

ESTOU NO quarto onde Bruce Chatwin escreveu partes de "Colina Negra", considerado por muitos o seu melhor livro; onde Colm Tóibin, um hóspede recorrente, escreveu trechos de "O Mestre", seu romance sobre Henry James; onde Michael Cunningham escreveu o último capítulo de "Dias Exemplares". O mesmo quarto que Zadie Smith incendiou, acidentalmente, com uma dessas espirais para matar mosquito, me informa a proprietária do lugar, a baronesa Beatrice von Rezzori Monti della Corte, ao longo do meu primeiro jantar, depois de já ter feito o favor de dirigir a minha atenção a um gato sentado de costas para nós, imóvel e em silêncio, camuflado pelo branco encardido do sofá, com uma orelha em estado avançado de putrefação, morrendo.
Descubro, por conta própria, que Edmund White se fez fotografar para a "Vanity Fair", refestelado, de óculos e com um livro nas mãos, dentro da mesma banheira onde tomo banho. Divido com uma família de pássaros histéricos (ou gambás, ou morcegos) o telhado de uma torre, na Toscana, diante de um bosque de carvalhos onde não falta lugar para fazerem seus ninhos.
Tentando me recuperar da visão do gato moribundo, que eu não teria percebido sem a intervenção impassível da anfitriã, pergunto se ele não estaria sofrendo em vão e se não seria melhor... E antes mesmo de eu poder pronunciar a palavra "sacrificá-lo", a baronesa me interpela do alto dos seus 80 anos: "Não, é o melhor que podemos fazer por ele. Ele está feliz por poder morrer entre nós. É assim também que eu quero morrer". O gato foi enterrado duas semanas depois, no jardim.
Faz três semanas desde a primeira noite, ao chegar, depois de 15 horas de avião, quando deixei a baronesa com uma expressão incrédula ao lhe responder que era alérgico a animais. Ela acabava de me perguntar justamente se eu gostava deles, enquanto seus três cães de estimação -de pequeno, médio e grande porte- me cercavam e me lambiam, aos pulos: "Adoro, sim, mas sou alérgico". Na mesma noite, sonhei que acordava com o rosto arranhado pelas unhas de um gato, cinco riscos paralelos, de uma orelha à outra, passando por cima da boca. E que a baronesa se fazia de desentendida quando eu lhe dizia que só podia ter sido o gato.
Não sei se é por causa do pó, da primavera ou dos animais, mas nunca espirrei tanto. Como se não bastasse, no final da primeira semana, despenquei, no meio da noite, da escada que leva do meu quarto no alto da torre ao banheiro. No dia seguinte, mostrei à baronesa o meu pé direito, que nesse meio-tempo tinha adquirido a forma de uma enorme bola roxa, e ela aproveitou para revidar: "Reconheci o hipocondríaco assim que você chegou".
Nos anos 60, Beatrice comandou uma importante galeria de arte, em Milão. Expôs alguns dos artistas americanos mais significativos da época, como Jasper Johns e Robert Rauschenberg. Em 1998, depois da morte do marido, Gregor von Rezzori, escritor de expressão alemã nascido na Bucovina (atual Romênia) e autor de "Memórias de Um Anti-Semita", entre outros romances, a baronesa decidiu transformar a casa do século 15, a 30 km de Florença, em uma fundação. E passou a receber escritores para retiros de até seis semanas.
O lugar é mesmo incrível. Não há como escapar, a não ser fazendo 8 km a pé até a estação de trem mais próxima, em terreno acidentado, com longas subidas e descidas. E excentricidade se paga com excentricidade. Há uma semana, a ex-namorada de um sobrinho da baronesa apareceu para jantar com um imenso tenor coreano, descendente da dinastia que unificou a Coréia na Idade Média. Estavam cruzando a Itália numa campanha para angariar fundos e apoio oficial para uma exposição polêmica que irá provar que os coreanos já se serviam de sistemas de impressão idênticos ao de Gutenberg anos antes de ele aparecer com a sua Bíblia. O tenor, que só falava coreano ou italiano, cantou "O Sole Mio" após o jantar, enquanto um dos cães latia aos seus pés.
Descobri, tardiamente, que o humor é a voz do desespero. Quando me convidou para a sua colônia de escritores, no ano passado, a baronesa perguntou se eu estava preparado. E, inadvertidamente, eu disse que sim. Agora, quando lhe digo que não gosto de escritores, ela arregala os olhos como quem pergunta: Mas, afinal, se é alérgico a animais e não gosta de escritores, então você gosta de quê? Teria sido presunçoso responder com o mais simples e o mais óbvio: gosto de literatura. É claro que prefiro ficar calado.


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