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CONTARDO CALLIGARIS
Guias para aventureiros
Se toda viagem é uma aventura, o melhor guia de viagem deveria ser escrito por nós mesmos
TENHO UMA relação quase erótica com os instrumentos dos
quais me sirvo para escrever.
Festejo, portanto, a chegada ao Brasil dos cadernos e blocos da legendária marca Moleskine.
A Moleskine começou a publicar
também "guias" das principais cidades do mundo. São cadernos quase
normais, cujas primeiras páginas
apresentam mapas detalhados da cidade e uma lista das ruas. Depois
disso, só há espaço em branco para
anotações: "Eis o mapa, percorra-o,
viva sua aventura e escreva seu próprio guia". Quer um bom restaurante? Nada de Michelin, converse com
os nativos.
É minha viagem ideal: a gente lê,
bem antes de viajar, guias e livros de
história, de arte e de ficção (romances ambientados na cidade que será
visitada). Se a viagem for de última
hora, resta estudar o guia turístico
no hotel, à noite, e marcar no mapa
os percursos do dia seguinte. Seja
como for, é bom sair pelas ruas levando consigo apenas um caderno,
para escrever o que se tornará, depois da viagem, o "nosso" guia.
Minha descoberta de Veneza, por
exemplo, aconteceu quase dessa forma. Li, antes de viajar, "The Stones
of Venice", de John Ruskin ("As Pedras de Veneza", ed. Martins Fontes,
esgotado, infelizmente).
Eu implicava com o amor exclusivo de Ruskin pelo gótico e com sua
antipatia pelo estilo clássico, mas a
inteligência e a sensibilidade do texto eram contagiantes. Ruskin sugere
que se chegue a Veneza pelo mar,
vindo de Chioggia, e no fim do dia,
para ver a República surgir das
águas na luz do pôr-do-sol. Fui de
trem (melhor do que de avião, de
qualquer forma); quando, mais tarde, consegui repetir a chegada de
Ruskin, lamentei não ter escutado
sua sugestão.
Naquela primeira estada, apenas
errei pela cidade com a lembrança
da leitura de Ruskin e um caderno
que, de café em café, de encontro em
encontro, enchi de notas.
As "pedras" não são a única razão
de viajar. Ultimamente, chegaram
em massa os guias da revista "Wallpaper" (ed. Phaidon). São livros de
bolso, com, no fim, uma dezena de
páginas brancas para anotações. O
que precede são fotografias com um
parágrafo de descrição. A ausência
de qualquer mapa supõe um viajante que nem queira se orientar, apenas preocupado em visitar (ou melhor, em ter visitado) os lugares memoráveis ("eu estive lá"). Os ditos
"lugares memoráveis" são os hotéis,
os restaurantes e as lojas mais luxuosas, spas, bares na moda e alguns
marcos que, às vezes, parecem ter sido escolhidos por um arquiteto
enlouquecido ou por alguém que
nunca colocou os pés na cidade em
questão. A sensação é que são guias
para não se esquecer dos lugares que
vai ser obrigatório mencionar numa
conversa entre emergentes na volta
das férias.
Fora a antipatia pelas fraquezas
narcisistas das classes emergentes,
nenhuma censura: uma viagem não
tem que ser obrigatoriamente um
banho na "alta cultura". Mas o que
não entendo é que a gente viaje para
bater ponto nos lugares, artísticos
ou mundanos, cuja menção futura
atestará que estivemos lá. Ou seja,
não entendo viagem sem aventura.
Sem chegar à ousada proposta das
páginas brancas dos Moleskine, os
melhores guias turísticos, hoje, tentam interessar tanto o viajante
mundano quanto o viajante "artístico" (que podem ser a mesma pessoa) e, sobretudo, tentam indicar ao
leitor lugares fora dos caminhos
mais trilhados. Ou seja, os guias se
preocupam em nos dar ao menos o
sentimento de uma aventura possível. Claro, não basta: a aventura não
depende apenas do encontro com o
inusitado, ela é, antes de mais nada,
uma disposição do espírito.
Uma surpresa: a Louis Vuitton pode ter-se tornado uma marca para
quem busca sinais que confirmem
seu status, mas, aparentemente, não
se esqueceu de sua origem, não se
esqueceu do que significa viajar. A
marca acaba de publicar uma série
de guias de cidades, em inglês e francês (Nova York, mais uma caixa com
outras cidades do mundo). O guia de
Nova York é o melhor que eu conheça -pela sóbria mistura de "dicas"
tradicionais (galerias, museus etc.) e
"dicas" mundanas (hotéis, restaurantes, bares, lojas, de luxo e de pechincha), pela menção de lugares
nada óbvios (do Old Town Bar aos
brechós) e, enfim, pela página dedicada às leituras literárias e de ficção
que são a melhor "introdução" à cidade. Só falta uma lista de filmes (ou
será que há uma, e eu não vi?).
ccalligari@uol.com.br
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