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NINA HORTA
Carne de baleia
O melhor é não comer
coisa tão portentosa;
a baleia tem proporções do sagrado, do hierofânico
MUITOS CIENTISTAS dizem
que esta história de "Save
the Whales" (salvem as baleias) já acabou. Espécies que estavam em extinção podem agora ser
comidas e protegidas. Ou vice-versa.
Na verdade, mesmo com as proibições, as meninas continuaram a
ser caçadas. Num dos simpósios sobre o assunto, um membro do Parlamento japonês deu sua opinião, ou
melhor, sua última palavra. "No Japão, nós temos nossos cachorrinhos
de estimação, mas não implicamos
com os coreanos nem os proibimos
de comer seus cachorros. Logo, ninguém tem o direito de nos pedir para
pararmos de comer baleias."
Os japoneses comem carne de baleia há séculos e foram salvos da fome na Segunda Guerra com carne de
baleia frita e gordura de baleia cozida. Carne que já comprei aqui, no
Mercado de Pinheiros, e que não nos
soube bem, por preconceito. Os japoneses criaram uma indústria milionária e escaparam de leis de proteção à baleia por meio de buracos
nas redes... da lei. A pesca é permitida para pesquisas científicas, e eles
logo começaram a pesquisar loucamente, mas parece que virados mais
para experiências gastronômicas.
Alguns dizem que, se não matarmos as baleias, elas comerão todos
os peixes do mar, glupt, com aquelas
bocarras imensas, onde já se aninharam Jonas e Gepetto.
Mas o melhor mesmo é não comer
uma coisa tão portentosa. Está fora
da escala dos nossos alimentos, tem
proporções do sagrado, do hierofânico. Sua caçada é a luta contra mil
touros de uma só vez, sua beleza e
elegância culpam a quem as enreda
em redes ou arpões.
O substituto para este gostinho de
carne com peixe seria ler "Moby
Dick", que acabou de sair pela Cosac
Naify. Quem não leu pode estar perdendo um dos três melhores livros
já escritos, segundo muitos críticos.
Mas o que comiam aqueles homens que saíam de terra firme para
ficar anos no mar, matando baleias e
guardando seu óleo para encher tonéis que viriam iluminar as ruas até
do Rio de Janeiro, recolhendo o âmbar para perfumes, ossos (não sei se
são ossos, alguma coisa durinha) para os espartilhos das mulheres? Comiam muito, nem sempre baleia.
Comiam tanto que não cabe nesta
crônica. Ishmael, o narrador e também protagonista de "Moby Dick",
achava que jejuar arruinava o corpo
e a alma e que todos os pensamentos
originados durante um jejum deveriam ser necessariamente um tanto
esfomeados. Ele e um amigo tentaram a caldeiradazinha caseira dos
Caldeirões, uma estalagem em Nantucket... "Quando a caldeirada fumegante entrou, [...] eram pequenos
moluscos suculentos, pouco maiores do que uma avelã, misturados
com biscoitos do mar amassados, e
carne de porco salgada, cortada em
pedacinhos; isso era enriquecido
com manteiga e temperado generosamente com sal e pimenta." "O
mais piscoso de todos os lugares piscosos era o Caldeirões [...]"
Um dos capitães gostava de uma
boa dieta e "apreciava de um modo
um tanto destemperado a baleia, a
mais saborosa iguaria para o seu paladar". Ensina em duas ou três páginas como fazer um bife de baleia.
"Vou lhe dizer o que fazer para não
estragá-lo cozinhando por muito
tempo. Segure o bife com uma mão e
mostre-lhe uma brasa com a outra;
isto feito, sirva-o, escutou? [...] E os
testículos para o café da manhã
-não se esqueça."
O cérebro da baleia é considerado
uma iguaria. "A caixa craniana é
quebrada com um machado e os
dois lobos arredondados e esbranquiçados são retirados (lembram
exatamente dois grandes pudins),
misturados com farinha e cozidos
até se tornarem um delicioso manjar, com sabor semelhante ao de cabeça de vitela." E muito, muito mais.
Aliás, absolutamente tudo sobre as
baleias e, de quebra, uma leitura e
tanto. "Moby Dick", Herman Melville, Cosac Naify.
ninahorta@uol.com.br
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