São Paulo, sexta-feira, 08 de maio de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

O poder e a glória


O empresário e o governante muitas vezes absorvem as desgraças da classe intelectual


APARENTEMENTE, DEVO estar trocando as bolas, mas creio que não. Um governante moderno gasta atualmente quase todas as suas energias em dois tipos de função: a de receber tensões que escapam a seu controle e que na maioria dos casos o obrigam a falar ou a fazer o que não quer; e a de cumprir uma rotina de compromissos (viagens, festas, jantares, recepções, solenidades) que poderiam ser controlados por um cerimonial mais austero e menos badalativo.
Somando as duas variáveis, percebe-se que não apenas o presidente da República mas qualquer funcionário graduado ou empresário de grande porte gasta suas energias com o nada ou com o pior do que o nada: a natural angústia gerada pelos problemas públicos ou gerenciais e as regras do protocolo que obrigam à maratona de solenidades e compromissos sociais que desgastam o organismo e pouco rendem em termos de solução e trabalho.
A ideia não é original, mas já tentaram impor a instituição dos sósias, caras parecidos com o governante ou empresário, que daria expediente noturno em jantares, simpósios e efemérides iguais e tantas. Nos regimes parlamentaristas, a distribuição de tarefas para o chefe da nação, que é um, e para o chefe de governo, que é outro, já diminui a barra. Pelo menos, dá mais tempo para que ambos desempenhem suas funções sem o corre-corre do presidencialismo, que obriga o governante a inaugurar a elevatória de um esgoto e meia hora depois receber a credencial do embaixador da Tanzânia.
Outro dia, examinei o balanço dos primeiros meses de um governante: um terço de seu tempo ele o passou dentro de aviões. Outro terço em cerimônias, congressos, jantares, comes e bebes mais ou menos cívicos, religiosos ou assistenciais. Finalmente, o terço que lhe sobrava ficou para o dormir e o comer em causa própria, ou seja, comer sem a obrigação de ouvir discursos e solicitações.
Como se vê, pouco trabalho e muita faina -o que dá enfarte e não ajuda nem a nação nem os indivíduos. Bem, o assunto que ia tratar hoje seria outro: o intelectual e o poder. Fica para a próxima. Mesmo assim, verifico que há relação entre os dois temas.
De uma forma geral, o poder hoje exercido no governo ou nas empresas é tarefa intelectual, ou intelectualizante. Daí a gravidade das tensões sofridas, pois o empresário e o governante muitas vezes absorvem as desgraças da classe intelectual: desgastam-se o diabo e são obrigados a engolir em seco, sem direito a explosão que pega mal em pessoas finas, educadas e cultas.
Antes que me perca definitivamente, cito um exemplo que considero pitoresco, mas que aconselharia a todos os homens de mando do país. O presidente Wenceslau Brás governou seus quatro anos sem brilho, mas com mineira correção humana e política. Creio que seu feito mais notório tenha sido a declaração de guerra à Alemanha, no primeiro conflito mundial. Quando se candidatou, na sua Itajubá natal, jamais poderia imaginar que um dia teria de entrar em guerra contra o Kaiser -do qual ele tinha pouquíssimas ideias. Mesmo assim, fez o seu dever de casa ditado pela situação internacional da época.
Pois Wenceslau, todos os dias, quando seu pateque-cebola marcava as cinco horas da tarde, levantava-se de sua cadeira presidencial, (que a imprensa de então xingava de curul), mandava todos os funcionários do Palácio do Catete irem embora, ele próprio preparava-se para ir também.
Quando saía o último contínuo, Wenceslau fechava o portão principal do palácio, aquela grade que dá para a calçada da rua do Catete. Metia a chave no bolso do colete e ia para casa -pois ninguém é de ferro e, naquela época, esgotado o tempo regulamentar do funcionalismo público, não havia prorrogação nem decisões por pênaltis. No dia seguinte, sempre à mesma hora, abria a quitanda.
O próprio Getúlio Vargas cumpria mais ou menos a mesma rotina, só que ficava trancado no seu gabinete particular assinando papéis e bilhetes: "O Ministério da Justiça está gastando lápis demais. Ver o que está havendo". No seu segundo governo, morava no próprio palácio e não tinha casa para onde ir. Se tivesse, a história dele e a do Brasil talvez fossem diferentes.


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