São Paulo, sábado, 08 de maio de 2010

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Crítica/"A Estrela Fria"

Poeta canta a saudade em retalhos

Em versos livres e nostálgicos, José Almino cria mosaico melancólico

MARCELO TÁPIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Feita de palavras "arrancadas do que passa e não importa", a poesia de "A Estrela Fria" canta o longínquo, presentificado por lampejos de uma "saudade de pedra" que "jaz no fundo do poço", mesmo sob o "azul do mais azul dos sóis a pino".
Da saudade, seja ela de um amigo morto ou da própria infância, José Almino constrói uma "vida a retalho", feita de centelhas do passado que se manifestam, por epifanias, embora seja ausência que "inundará minha alma". Os estímulos do dia, por mais passageiros ou ínfimos -como a "carícia da poeira"-, "trazem a eternidade da infância esfacelada".
Ainda há lugar para a "saudade" na poesia? Como mera manifestação da função emotiva da linguagem, pode-se dizer que não. Mas, quando se leem os poemas de Almino, a nostalgia que os impregna parece partir-se em reflexos de um eu multiplicado (ou dividido), em muitos eus que não encontram seu lugar e o buscam num tempo de passagem, a unir lembranças que adquiram sua permanência não nos seres, mas nas palavras.
Não há mais coisas porque essas se vão, se foram; as palavras são apenas "sombra das coisas", mas há o recurso de torná-las coisas para que as recordações se concretizem em novo mosaico feito e desfeito: "A infância se esfacela brutal / diante dos olhos passados e adiante, no poema".
Se a "água fria" lambe "nossos dias", a lembrança será árida: biografia "inóspita como um bife malpassado". Luta-se, sim, contra a saudade: "limpa, limpa/ limpa/ a puta/ desta nostalgia"; há, porém, a persistência dos momentos acumulados por teimosia: "Humilhado,/ triste, velho e burro./ Haja relho,/ haja orgulho".

Memória e exílio
Como a infância no Recife, que teima em perdurar em palavra, mesmo quando se afirma o contrário ("um domingo enxuto,/ sem infância"), o tempo no exílio vivido pelo poeta resta-lhe como motor de sua melancolia seca, que se indigna com a própria existência, como na "Canção do Exilado", a evocar, em reverso, o Salmo 137.
A poesia de Almino, feita em versos livres, parece oscilar entre a prosa cotidiana eternizada e a poesia absorvida, enxuta; incorpora citações, faz suas as vozes que ecoam na memória, encaixando-as em ocos reservados nos próprios versos.
Mas há também, na forma, "citação" de medidas -um dos pontos altos desta poesia que entende o amor como "um longínquo solilóquio" são estes versos heptassílabos: "E a tua boca é um traço,/ no mesmo prumo do riso,/ no mesmo desembaraço/ do teu olhar, sempre oblíquo,/ punhal aflito em ferida,/ sangrando bem na medida/ dessa saudade tão rara".

MARCELO TÁPIA, poeta e tradutor, é autor de "Valor de Uso" (Annablume) e diretor da Casa Guilherme de Almeida em São Paulo


A ESTRELA FRIA

Autor: José Almino
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (80 págs.)
Avaliação: bom




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