São Paulo, sexta, 8 de maio de 1998

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Amor e responsabilidade no centro da história

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial


Quando João Paulo 2º foi eleito, a mídia internacional abriu espaço ao curioso tipo de papa que o século estava ganhando. Deu muita importância ao atleta e esqueceu que havia um "scholar" naquele sólido polonês que parecia um jogador de rúgbi.
Desprezando a sua parte diletante de poeta e teatrólogo (cuja abordagem crítica será sempre suspeita), sobra o mais importante que é o seu talhe de pensador.
O perfil filosófico de Karol Wojtyla pode ser esboçado a partir da universidade onde se formou, o Angelicum, de Roma, dirigido por dominicanos. Seu esquema de pensamento coloca o homem, com as suas aspirações e fraquezas, no centro de um sistema que, reconhecendo a miséria humana, constata que a sua aspiração fundamental é voltar-se para Deus.
Ao defender tese de doutorado, Wojtyla escolheu a obra do místico espanhol João da Cruz, poeta e doutor da Igreja, no qual se inspirou para aplicar a analogia entre Deus e o homem, tal como ficara estabelecida em Tomás de Aquino. Mesmo depois de doutorado, Karol continuou estudando o tomismo, recebendo fortes influências de um de seus mestres, Roman Ingarden, que morreu em 1970, em Cracóvia.
Aos 39 anos, antes de ser sagrado bispo, Wojtyla se entusiasmou pela fenomenologia lançada pelo alemão Edmund Iiusserl (1859-1938). Intelectualmente, ele procurava um ponto de apoio sólido. Sua personalidade não se ajustaria a uma linha frouxa, oscilante. Por isso mesmo, a tese de doutorado em filosofia é reveladora. Para Wojtyla, o universo é claro e lógico: qualquer homem, deixado livre em sua plena consciência, encontra naturalmente Deus. Para ilustrar esse pensamento, escolheu o filósofo Max Scheler, um husserliano, morto em 1928. Entre João da Cruz, objeto de sua tese teológica, e Max Scheler, estudado em sua tese de filosofia, as diferenças são, aparentemente, brutais. A mesma diferença que encontramos na relação entre o homem objeto da história e produto da biologia, e o homem objeto da criação e da redenção cristã.
O enunciado de sua tese causou espanto no ambiente cultural em que Wojtyla se movimentava: "O sistema filosófico de Max Scheler pode ser usado como instrumento da ética cristã?" Não foi difícil responder afirmativamente a esta tese, uma vez que Wojtyla já havia estabelecido, na obra de Scheler, a validade da fenomenologia para a compreensão dos valores religiosos. Além do mais, Max Scheler foi o primeiro filósofo que criticou asperamente o utilitarismo e o consumismo da civilização moderna.
Este ponto é fundamental para se compreender a trajetória do pensamento de Wojtyla. Nesse núcleo, centralizado no homem que, em sua liberdade de consciência, percebe a existência de Deus, e em sua livre inteligência dele se avizinha, Wojtyla edificou intransigente oposição a todos os sistemas filosóficos, sociais, econômicos e políticos que, de alguma forma, ferem a função do espírito.
Antes mesmo de ser papa, ele via a Igreja como uma reunião de homens, cada qual com a sua própria individualidade. Uma instituição que, em linguagem política, devia se manter pluralista, conservando o núcleo doutrinário e moral do qual se origina e no qual se sustém.
Seu poeta predileto é (ainda) Cyprian Kamil Norwid, que morreu na miséria, em Paris, em 1883. Com 50 anos de antecipação, Norwid condenou a civilização industrial deste século: o homem tem dificuldade de se elevar à verdade, ao bem e ao belo, pois a sociedade industrial o exige em outro campo, instrumentalizando-o através do utilitarismo e brutalizando-o através do consumismo.
O livro mais conhecido de Wojtyla é "Amor e Responsabilidade", que provocou mal-estar na Cúria Romana. Na ocasião, discutia-se exaltadamente a "Humanae Vitae", de Paulo 6º, que trouxe o pensamento da Igreja a respeito do controle de natalidade, dividindo o episcopado, clero e católicos do mundo inteiro. Condenando a pílula anticoncepcional e o aborto, tolerando apenas o método da abstinência sexual periódica (tabela de Ogino-Knaus), a encíclica pareceu retrógrada sobretudo aos fiéis dos países industrializados. Bispos e padres interpelaram o Vaticano, deixando claras as dificuldades que encontravam na execução da pastoral.
Karol Wojtyla abordou o mesmo tema de "Amor e Responsabilidade", mas em matéria de controle da natalidade vai além da paternidade responsável. Ele expressa em sua obra o pensamento tomista mais ou menos reciclado por Jacques Maritain, com o homem (enquanto amor e responsabilidade) no centro da história.
Ao embarcar para Roma, em outubro de 1978, a fim de participar do conclave que o elegeria papa, o cardeal Karol Wojtyla levou na bagagem alguns números atrasados de "Le Monde" e uma revista de ensaios marxistas. Ao receber apenas um voto num dos primeiros escrutínios, estava lendo a revista e não afastou os olhos do texto. Somente no segundo dia de conclave, quando sua votação passou dos cinco votos e começou a subir, ele fechou a revista e exibiu, para seus colegas, um rosto triste e preocupado. Tinha razões para isso.



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