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CARLOS HEITOR CONY
O galo de Sócrates e o uivo do lobo
A cusado de corromper a
juventude, Sócrates foi condenado a beber cicuta, beberagem que antecedeu a guilhotina,
a forca, a cadeira elétrica e os
"38" que hoje executam sentenças
de morte nem sempre justas. Mas,
antes de morrer, como bom pagão
e excelente filósofo, lembrou-se de
que prometera sacrificar um galo
a um de seus amigos. E pediu aos
discípulos que o fizessem, pois
não se deve ir desta para pior sem
pagar promessas feitas e esquecidas.
O intróito pretensamente erudito serve para que eu pague promessa não cumprida. Não sou de
prometer sacrificar galos, guardo
dos galináceos de ambos os sexos
uma prudente distância, não os
aprecio como alimento nem como
oferenda a deuses em que não
creio.
Mas volta e meia prometo coisas que, por um motivo ou outro,
acabo esquecendo, e uma delas
foi-me cobrada semana passada,
o que me encheu de confusão e remorso.
Recebera, no início de maio, e-mail de leitora que não conheço
pessoalmente, cujo nome é Tânia
-e deve ser mesmo, pois não seria o caso de apelar para um codinome.
Ela atravessava uma crise das
brabas e devia ter motivos para
isso. Todos temos razões simples
ou complexas para entrarmos em
fossa. Do fundo de uma delas, pediu-me que em seu aniversário,
no dia 26 de maio, eu lhe enviasse
a mensagem de uma palavra boa,
de um apelo carinhoso.
Socraticamente, prometi-lhe sacrificar o galo de minha compreensão. Nada me custaria. E,
além do mais, apreciara o estilo
da leitora e me comovera com as
suas considerações sobre a vida, a
dela e a de todos nós, neste vale
que chamam de lágrimas -por
aí se vê que Tânia não está sozinha no pranto geral pela nossa
humana condição.
Acontece que no tal dia estava
de viagem. Não pude mandar-lhe
a mensagem prometida. Ao chegar em casa, abri o notebook e o
primeiro e-mail que me apareceu
foi o dela. Em duas pequenas linhas, cobrou-me a promessa e
antecipadamente me perdoou.
Foi então a vez de não me perdoar. Garanti que, antes de beber
a cicuta cotidiana, que mata aos
poucos e inapelavelmente, sejamos nós culpados ou inocentes, eu
lhe mandaria a mensagem prometida. Que ela relevasse o desencontro da data, todos os dias são
dias do Senhor, "haec dies quam
fecit Dominus", diz uma piedosa
antífona que serve para tudo, a
dor e o prazer, o amor e a indiferença.
Para falar a verdade, não sei
quanto anda custando um galo
no mercado de aves e ovos. Nos
primeiros meses do Plano Real,
ouvia dizer que os frangos estavam baratos, de maneira que,
mesmo crescidos, os frangos em
forma de galo não deviam estar
caros.
Seja lá quanto for, devem custar
menos do que o esforço de uma
crônica envergonhada. Aqui estou eu, esganando o pescoço de
uma ave inocente, cujo sangue será oferecido no altar da solidariedade. Que Tânia me perdoe o
atraso. Também eu tenho meus
espantos, alguns legítimos, outros
ilegítimos, e uns pelos outros não
tenho a quem confessá-los, ou
melhor, posso confessá-los publicamente, como agora o faço, mas
sem direito ao consolo individual
e fraterno. Primeiro, porque não
o mereço; segundo, porque o espanto pode ser comunicado, mas
não compartilhado.
Prostrado a seus pés, Tânia, ofereço-me à sua angústia que afinal
é a angústia de todos nós nas horas em que o uivo, por mais distante que esteja, nos lembra que
há um lobo rondando nosso território, lobo vigilante e impessoal,
que não tem culpa de ser lobo, faz
o seu ofício de lobo como um dever. Façamos nós o nosso, tendo
medo dele e de seu uivo que nos
amedronta ou inquieta.
Nada podemos, Tânia, a não
ser, em escala insignificante, procurar o refúgio em nós mesmos,
uma vez que a proteção dos outros é problemática e custa um
preço que não podemos pagar.
Acredito que tudo tenha melhorado para você. Que no próximo
26 de maio, ao contrário do poeta, você descubra que tudo vale a
pena, ainda que a alma seja pequena.
Temos alma pequena. Sócrates
sabia disso, daí que nada escreveu, de tudo desconfiou. E, como
Cristo, que dividiu a história em
antes e depois dele, Sócrates dividiu a sabedoria humana em antes e depois da cicuta que foi obrigado a beber, porque corrompeu
a mocidade com a consciência de
nossa insignificância.
Perdoe o atraso, mais uma vez,
e perdoe sobretudo a confusão
destas linhas que, antigamente,
nas cartas que enviávamos num
tempo em que não havia e-mails,
nós chamávamos de "mal traçadas".
Mal traçadas linhas. Haverá linhas bem traçadas? Na pergunta
que Sócrates não fez a si mesmo,
está um resumo de tudo o que ele
ensinou inutilmente à mocidade
de todos nós, que envelhecemos
sem nada aprender.
Pelo menos de minha parte,
com ele aprendi a sacrificar o galo
prometido, que pode não valer
nada, mas é inofensivo e procura
ser menos ameaçador do que o
uivo que ouvimos naquela hora
que acertadamente chamamos de
"hora do lobo". Ano que vem, no
dia 26 de maio, prometa-me pensar em mim.
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