São Paulo, sexta-feira, 08 de junho de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

O galo de Sócrates e o uivo do lobo

A cusado de corromper a juventude, Sócrates foi condenado a beber cicuta, beberagem que antecedeu a guilhotina, a forca, a cadeira elétrica e os "38" que hoje executam sentenças de morte nem sempre justas. Mas, antes de morrer, como bom pagão e excelente filósofo, lembrou-se de que prometera sacrificar um galo a um de seus amigos. E pediu aos discípulos que o fizessem, pois não se deve ir desta para pior sem pagar promessas feitas e esquecidas.
O intróito pretensamente erudito serve para que eu pague promessa não cumprida. Não sou de prometer sacrificar galos, guardo dos galináceos de ambos os sexos uma prudente distância, não os aprecio como alimento nem como oferenda a deuses em que não creio.
Mas volta e meia prometo coisas que, por um motivo ou outro, acabo esquecendo, e uma delas foi-me cobrada semana passada, o que me encheu de confusão e remorso.
Recebera, no início de maio, e-mail de leitora que não conheço pessoalmente, cujo nome é Tânia -e deve ser mesmo, pois não seria o caso de apelar para um codinome.
Ela atravessava uma crise das brabas e devia ter motivos para isso. Todos temos razões simples ou complexas para entrarmos em fossa. Do fundo de uma delas, pediu-me que em seu aniversário, no dia 26 de maio, eu lhe enviasse a mensagem de uma palavra boa, de um apelo carinhoso.
Socraticamente, prometi-lhe sacrificar o galo de minha compreensão. Nada me custaria. E, além do mais, apreciara o estilo da leitora e me comovera com as suas considerações sobre a vida, a dela e a de todos nós, neste vale que chamam de lágrimas -por aí se vê que Tânia não está sozinha no pranto geral pela nossa humana condição.
Acontece que no tal dia estava de viagem. Não pude mandar-lhe a mensagem prometida. Ao chegar em casa, abri o notebook e o primeiro e-mail que me apareceu foi o dela. Em duas pequenas linhas, cobrou-me a promessa e antecipadamente me perdoou.
Foi então a vez de não me perdoar. Garanti que, antes de beber a cicuta cotidiana, que mata aos poucos e inapelavelmente, sejamos nós culpados ou inocentes, eu lhe mandaria a mensagem prometida. Que ela relevasse o desencontro da data, todos os dias são dias do Senhor, "haec dies quam fecit Dominus", diz uma piedosa antífona que serve para tudo, a dor e o prazer, o amor e a indiferença.
Para falar a verdade, não sei quanto anda custando um galo no mercado de aves e ovos. Nos primeiros meses do Plano Real, ouvia dizer que os frangos estavam baratos, de maneira que, mesmo crescidos, os frangos em forma de galo não deviam estar caros.
Seja lá quanto for, devem custar menos do que o esforço de uma crônica envergonhada. Aqui estou eu, esganando o pescoço de uma ave inocente, cujo sangue será oferecido no altar da solidariedade. Que Tânia me perdoe o atraso. Também eu tenho meus espantos, alguns legítimos, outros ilegítimos, e uns pelos outros não tenho a quem confessá-los, ou melhor, posso confessá-los publicamente, como agora o faço, mas sem direito ao consolo individual e fraterno. Primeiro, porque não o mereço; segundo, porque o espanto pode ser comunicado, mas não compartilhado.
Prostrado a seus pés, Tânia, ofereço-me à sua angústia que afinal é a angústia de todos nós nas horas em que o uivo, por mais distante que esteja, nos lembra que há um lobo rondando nosso território, lobo vigilante e impessoal, que não tem culpa de ser lobo, faz o seu ofício de lobo como um dever. Façamos nós o nosso, tendo medo dele e de seu uivo que nos amedronta ou inquieta.
Nada podemos, Tânia, a não ser, em escala insignificante, procurar o refúgio em nós mesmos, uma vez que a proteção dos outros é problemática e custa um preço que não podemos pagar. Acredito que tudo tenha melhorado para você. Que no próximo 26 de maio, ao contrário do poeta, você descubra que tudo vale a pena, ainda que a alma seja pequena.
Temos alma pequena. Sócrates sabia disso, daí que nada escreveu, de tudo desconfiou. E, como Cristo, que dividiu a história em antes e depois dele, Sócrates dividiu a sabedoria humana em antes e depois da cicuta que foi obrigado a beber, porque corrompeu a mocidade com a consciência de nossa insignificância.
Perdoe o atraso, mais uma vez, e perdoe sobretudo a confusão destas linhas que, antigamente, nas cartas que enviávamos num tempo em que não havia e-mails, nós chamávamos de "mal traçadas".
Mal traçadas linhas. Haverá linhas bem traçadas? Na pergunta que Sócrates não fez a si mesmo, está um resumo de tudo o que ele ensinou inutilmente à mocidade de todos nós, que envelhecemos sem nada aprender.
Pelo menos de minha parte, com ele aprendi a sacrificar o galo prometido, que pode não valer nada, mas é inofensivo e procura ser menos ameaçador do que o uivo que ouvimos naquela hora que acertadamente chamamos de "hora do lobo". Ano que vem, no dia 26 de maio, prometa-me pensar em mim.



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