São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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ARTIGO

"Nazarín" é ato de fé pela humanidade de Luis Buñuel

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) prepara um volume intitulado "The Hidden God" (O Deus Oculto), no qual pede a escritores que escolham um filme de temática religiosa aparente ou, conforme indica o título da série, oculta.
A lista é longa e interessante e vai de Dreyer a Scorsese, passando por Bergman, Bresson e Kurosawa. Naturalmente, escolhi Luis Buñuel e, entre seus ""deuses ocultos", a adaptação de ""Nazarín", de Benito Pérez Galdós.
Em 1958, preparava o trabalho de promoção de ""Nazarín", que havia sido convidado pelo Festival de Cannes, apesar da oposição do governo mexicano. Como em 1950, quando ""Los Olvidados" concorreu em Cannes, os olhos míopes do pudor oficial consideraram ""Nazarín" prejudicial à imagem do México.
Em seu lugar, o governo enviou a Cannes, em 1958, um filme realmente prejudicial à imagem do México: "La Cucaracha", coletânea de imagens modorrentas da Revolução.
Os governos se opuseram a "Los Olvidados" e a "Nazarín" porque, segundo eles, Buñuel traça o retrato de um México pobre, violento e sujo.
"Nazarín" conta a história de um humilde padre privado de sua paróquia por uma hierarquia arrogante. Visto como louco perigoso, Nazarín sabe que sua loucura consiste na imitação de Cristo, e Buñuel o lança num fascinante "road movie". No caminho, em diversos momentos, a vontade cristã de Nazarín encontra apenas desprezo, enganação e violência. Sua fé no ideal cristão (a vida de Jesus) é comparável à fé de Dom Quixote no ideal cavalheiresco.
Como Quixote, Nazarín tem seus Sanchos -só que, num volteio imaginativo brilhante, os escudeiros de Nazarín são duas prostitutas que o seguem, contra sua vontade, mas que acabam por se revelarem cruciais para sua "via-crúcis". Nazarín só pode imitar a Cristo se abrir mão de sua aspiração à salvação individual e descobrir que existe apenas uma salvação, na companhia dos outros. O inferno são os outros, diz a célebre frase de Sartre. Mas, respondeu Buñuel, sem os outros não há paraíso.
Antes de pôr sua fé à prova, Nazarín sabe que Cristo individualiza a salvação, a põe ao alcance de todos. Mas, depois de sua "via-crúcis", o sacerdote ganha a consciência de que a imitação de Cristo significa escândalo, desordem, águas revoltas. Nazarín se converte no inimigo da ordem. O tema de Maria Madalena, tão dramaticamente utilizado por Scorsese em "A Última Tentação de Cristo", é duplicado por Buñuel em "Nazarín". A presença das duas mulheres (Marga López e Rita Macedo) é, em si, uma ousada afirmação do erótico dentro do sagrado.
Essa dimensão erótica em "Nazarín" é inseparável do muito discutido final do filme. O sacerdote é conduzido por um caminho poeirento, num cordão de presos. Uma mulher piedosa lhe oferece um presente insólito: uma pinha, objeto comparável, em sua difícil manipulação, a uma granada explosiva. Num primeiro momento, Nazarín recusa o presente. Depois acaba por aceitá-lo e agradece à mulher, dizendo "Que Deus lhe pague". É o momento culminante do filme. O mais profundo, comovente e emotivo de um grande ator, Francisco Rabal.
Talvez Nazarín tenha perdido a fé em Deus. Mas ganhou fé na humanidade e converte-se em parte fiel, cética e humana da criação divina. Em "Nazarín", santos e pecadores unem-se na experiência do mundo, porque apenas os homens vão redimir os homens, quer o façam em nome de Deus ou contra Ele.
Escolhi uma frase de Pascal para ilustrar o "press-book" do Festival de Cannes de 58. "Se não me tivesses encontrado, não me procurarias." Deus está oculto. A natureza está corrompida. Então surge Jesus, e sua dupla paixão -trânsito e sofrimento- nos assimila à sua presença carnal e visual sobre a Terra. Talvez Buñuel tenha compreendido que um "ateu pela graça de Deus" como ele se situava na ponte entre o Deus escondido, que abandonou Jesus no Calvário e esqueceu suas criaturas humanas, e o próprio Jesus. Como Pascal, Buñuel não pode obviar a questão da fé, a questão do ser humano que crê. Não porque ele esteja procurando o mais precioso em seus próprios corações.
Talvez a fé de Buñuel (é o que me faz saber o sacerdote dominicano Julián Pablo, com quem Buñuel passou seus últimos dias conversando) seja que todos nós podemos ser cristóforos, portadores de Cristo, portadores de valores que queremos radicar no mundo exatamente porque todos nós nos perguntamos: ""O que existe além desta nossa vida?".
Dessa maneira, Nazarín, como Jesus, se converte num ser religioso porque não ressuscita os mortos. Ressuscita os vivos. O mundo inteiro se volta contra ele, mas Nazarín persiste em sua imitação de Cristo, convencido de que uma pessoa não pode ser Deus, mas Deus, sim, pode ser uma pessoa.


Carlos Fuentes é mexicano, autor de "A Morte de Artemio Cruz", entre outros



Tradução Clara Allain



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