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ARTIGO
"Nazarín" é ato de fé pela humanidade de Luis Buñuel
CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Museu de Arte Moderna
de Nova York (MoMA) prepara um volume intitulado "The
Hidden God" (O Deus Oculto),
no qual pede a escritores que escolham um filme de temática religiosa aparente ou, conforme indica o título da série, oculta.
A lista é longa e interessante e
vai de Dreyer a Scorsese, passando por Bergman, Bresson e Kurosawa. Naturalmente, escolhi Luis
Buñuel e, entre seus ""deuses ocultos", a adaptação de ""Nazarín", de
Benito Pérez Galdós.
Em 1958, preparava o trabalho
de promoção de ""Nazarín", que
havia sido convidado pelo Festival de Cannes, apesar da oposição
do governo mexicano. Como em
1950, quando ""Los Olvidados"
concorreu em Cannes, os olhos
míopes do pudor oficial consideraram ""Nazarín" prejudicial à
imagem do México.
Em seu lugar, o governo enviou
a Cannes, em 1958, um filme realmente prejudicial à imagem do
México: "La Cucaracha", coletânea de imagens modorrentas da
Revolução.
Os governos se opuseram a
"Los Olvidados" e a "Nazarín"
porque, segundo eles, Buñuel traça o retrato de um México pobre,
violento e sujo.
"Nazarín" conta a história de
um humilde padre privado de sua
paróquia por uma hierarquia arrogante. Visto como louco perigoso, Nazarín sabe que sua loucura consiste na imitação de Cristo,
e Buñuel o lança num fascinante
"road movie". No caminho, em
diversos momentos, a vontade
cristã de Nazarín encontra apenas
desprezo, enganação e violência.
Sua fé no ideal cristão (a vida de
Jesus) é comparável à fé de Dom
Quixote no ideal cavalheiresco.
Como Quixote, Nazarín tem
seus Sanchos -só que, num volteio imaginativo brilhante, os escudeiros de Nazarín são duas
prostitutas que o seguem, contra
sua vontade, mas que acabam por
se revelarem cruciais para sua
"via-crúcis". Nazarín só pode
imitar a Cristo se abrir mão de sua
aspiração à salvação individual e
descobrir que existe apenas uma
salvação, na companhia dos outros. O inferno são os outros, diz a
célebre frase de Sartre. Mas, respondeu Buñuel, sem os outros
não há paraíso.
Antes de pôr sua fé à prova, Nazarín sabe que Cristo individualiza a salvação, a põe ao alcance de
todos. Mas, depois de sua "via-crúcis", o sacerdote ganha a consciência de que a imitação de Cristo significa escândalo, desordem,
águas revoltas. Nazarín se converte no inimigo da ordem. O tema
de Maria Madalena, tão dramaticamente utilizado por Scorsese
em "A Última Tentação de Cristo", é duplicado por Buñuel em
"Nazarín". A presença das duas
mulheres (Marga López e Rita
Macedo) é, em si, uma ousada
afirmação do erótico dentro do
sagrado.
Essa dimensão erótica em "Nazarín" é inseparável do muito discutido final do filme. O sacerdote
é conduzido por um caminho
poeirento, num cordão de presos.
Uma mulher piedosa lhe oferece
um presente insólito: uma pinha,
objeto comparável, em sua difícil
manipulação, a uma granada explosiva. Num primeiro momento,
Nazarín recusa o presente. Depois
acaba por aceitá-lo e agradece à
mulher, dizendo "Que Deus lhe
pague". É o momento culminante
do filme. O mais profundo, comovente e emotivo de um grande
ator, Francisco Rabal.
Talvez Nazarín tenha perdido a
fé em Deus. Mas ganhou fé na humanidade e converte-se em parte
fiel, cética e humana da criação divina. Em "Nazarín", santos e pecadores unem-se na experiência
do mundo, porque apenas os homens vão redimir os homens,
quer o façam em nome de Deus
ou contra Ele.
Escolhi uma frase de Pascal para
ilustrar o "press-book" do Festival de Cannes de 58. "Se não me
tivesses encontrado, não me procurarias." Deus está oculto. A natureza está corrompida. Então
surge Jesus, e sua dupla paixão
-trânsito e sofrimento- nos assimila à sua presença carnal e visual sobre a Terra. Talvez Buñuel
tenha compreendido que um
"ateu pela graça de Deus" como
ele se situava na ponte entre o
Deus escondido, que abandonou
Jesus no Calvário e esqueceu suas
criaturas humanas, e o próprio Jesus. Como Pascal, Buñuel não pode obviar a questão da fé, a questão do ser humano que crê. Não
porque ele esteja procurando o
mais precioso em seus próprios
corações.
Talvez a fé de Buñuel (é o que
me faz saber o sacerdote dominicano Julián Pablo, com quem Buñuel passou seus últimos dias
conversando) seja que todos nós
podemos ser cristóforos, portadores de Cristo, portadores de valores que queremos radicar no
mundo exatamente porque todos
nós nos perguntamos: ""O que
existe além desta nossa vida?".
Dessa maneira, Nazarín, como
Jesus, se converte num ser religioso porque não ressuscita os mortos. Ressuscita os vivos. O mundo
inteiro se volta contra ele, mas
Nazarín persiste em sua imitação
de Cristo, convencido de que uma
pessoa não pode ser Deus, mas
Deus, sim, pode ser uma pessoa.
Carlos Fuentes é mexicano, autor de "A
Morte de Artemio Cruz", entre outros
Tradução Clara Allain
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