São Paulo, terça-feira, 08 de junho de 2010

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OPINIÃO

Com traços fortes do cangaço, roteiro tem mais Lima Barreto que Glauber

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"O Capitão do Cangaço", roteiro do ano 2000, ainda devia passar por vários desenvolvimentos, se pensarmos que Rogério Sganzerla, ao morrer, deixou escritas resmas e resmas de anotações para "Luz nas Trevas", projeto que coube a Helena Ignez levar adiante.
Nem mesmo o título parece ser definitivo. Ao lado, escritos a mão, estão títulos alternativos: "Os Últimos Dias de Lampião", "Cangaceiro de Mu", "Voodoo Chile".
O texto do argumento sugere um digno "remake" de "O Cangaceiro", onde o capitão Edevino e seu grupo invadem cidades, combatem a Volante, sequestram cavalos, roubam, desfrutam da hospitalidade de posseiros, rezam e matam (às vezes simultaneamente).
Deus e o Diabo estão ali, sem dúvida, mas o terreno revisitado não é o de Glauber Rocha, mas de Lima Barreto, limpo das limitações moralizantes do original (de 1953).
A leitura do roteiro desenvolvido sugere uma leitura que acentua traços fortes do cangaço: a fé e a barbárie misturam-se, assim como a seca e a impiedade.
A luta contra o progresso, representado pela "rodagem", apenas sugerido no filme de Lima Barreto, torna-se obsessão central de Edevino: a estrada federal representa o início do fim do seu reinado.
Uma passagem de olhos no roteiro basta para ver que Rogério escrevia "vendo" as cenas, detalhando-as, retendo cada dimensão de plano ou movimento da câmera.
No mais, a atenção aos movimentos e a observação de filmagem em "faux raccord" (em descontinuidade) em dado momento dão a perceber que se trata de cangaço livre de academismo o do cineasta, embora criado no sistema narrativo tradicional.
Essa pode ser, aliás, uma surpresa. O cangaço de Sganzerla sugere mais um elo com a tradição do que o espírito subversivo que o tornou famoso (ninguém se iluda: ele conhecia o cinema brasileiro como poucos). Releitura contemporânea da tradição. Locações de quem conhece a epopeia de Canudos.
Não se vê traço da obsessão do cineasta com a barragem à existência de uma cinematografia brasileira (análoga à oposição de Edevino à estrada de rodagem). A obsessão transfere-se ao leitor: que diabo faz o país negar tão tenazmente câmera e meios a um autor desse porte?


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