São Paulo, terça-feira, 08 de junho de 2010

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Artista mostra videogame da guerra

Obra de Harun Farocki, que está na próxima Bienal, usa animações feitas pelo Exército para treinar soldados

Alemão visitou bases militares nos EUA para mostrar como desenhos preparam homens para antes e depois da guerra


SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO

Não é pura a guerra. Harun Farocki entende isso e opera no abismo entre estratégia militar e a realidade áspera do sangue derramado.
Nas últimas quatro décadas, esse alemão disseca imagens de conflitos pelo mundo, da queda da ditadura romena à atual guerra no Iraque. Em quase cem filmes e vídeos, buscou construir uma espécie de anatomia da memória bélica.
"Jogos Sérios", a obra que traz para a próxima Bienal de São Paulo, em setembro, mostra que essa memória se torna cada vez mais virtual.
Farocki escancara as animações usadas pelo Exército norte-americano no treinamento de soldados antes do embarque rumo ao Iraque.
São as mesmas imagens -Bagdá em chamas e poças de sangue feitas de pixels- usadas para a terapia dos homens na volta para a casa.
"Mostro esses dois usos da imagem, do preparo para a guerra ao tratamento do trauma", diz Farocki, em entrevista à Folha. "Esse exercício com a imagem digital dá a entender como se constrói a memória da guerra."
Também aponta para uma transição na natureza da imagem no mundo atual.
Em contraponto à película granulada da Guerra do Vietnã e o verde brilhante e macabro da visão noturna da Guerra do Golfo, o teatro iraquiano será lembrado como fabricação edulcorada.

STATUS DA ANIMAÇÃO
"Mudou o status da animação", afirma Farocki. "Está mais poderosa do que a reprodução fotográfica, uma tendência nova e estranha."
Na visão de guerra dos bastidores do confronto, a paisagem iraquiana surge achatada, sem relevo. Homens de carne viram fantoches de entranhas eletrônicas, numa anestesia generalizada que transforma os inimigos em alvos abstratos.
"Essas criaturas representam humanos", descreve Farocki. "Mas essa é uma imagem tecnológica, o soldado está no comando do jogo, não importa se leva um tiro ou não, está no comando."
Talvez porque a câmera tenha saído de cena, a vida tenha perdido valor na guerra virtual, longe da carnificina palpável de tempos atrás.
"É muito diferente de reconstruir a história a partir de imagens filmadas", diz Farocki. "É como um videogame, e o Pentágono alimenta a indústria, não esconde isso."
No plano político, esses desenhos animados também desequilibram opiniões.
Enquanto soldados americanos e britânicos aparecem como bonequinhos digitalizados, homens do outro lado do front surgem em toda a crueza de barbas e turbantes nos noticiários da televisão.
"Isso joga sempre as pessoas para um lado do conflito", diz Farocki. "É como ver uma briga de armas de fogo contra um arco e flecha."

IMPUREZA DO REAL
Na comparação entre possibilidades tecnológicas e realidade, Farocki arquitetou outra obra. Jogou lado a lado imagens da trajetória imaginada de um míssil e fotografias feitas por uma câmera presa ao corpo do projétil.
É o que ele chama de comparação entre "guerra pura" e a "impureza do real". "Estou interessado em imagens operacionais", diz Farocki. "Coisas nada estéticas, que sejam pura comunicação."
E na "estética terrorista" de Farocki, a imagem se torna política quando prazer visual encosta na dor. Não é a vítima do napalm, a garotinha eternizada na fotografia.
No lugar dela, é a imagem do laboratório estéril, onde fazem o veneno, que aparece noutra obra do artista. Seco, desvela a fábrica do horror com a mesma pegada minimalista, clínica com que documentou esse videogame pop da guerra no Iraque.


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