São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O hotel era pior do que a favela'

da Reportagem Local

Geladeira, fogão, duas TVs, guarda-roupa, vídeo, dois liquidificadores, ferro elétrico, batedeira, secador de cabelo, sofá, mesa, quatro cadeiras, bicicleta e enciclopédia. Foi o que Rute Queiroz, 43, diz ter perdido após participar do programa do Ratinho.
"Tudo o que eu tenho agora é um cobertor. Se eu sair do hotel, sou uma mendiga, com um cobertor nas costas e três filhas. Como é que eu vou recomeçar sem a ajuda de alguém? Aquele programa foi a minha destruição. É melhor morrer", desabafa Rute.
Ela foi ao programa porque traficantes do Morro do Macaco, em Cotia (Grande São Paulo) ameaçavam matar sua filha.
O namoro começou depois que Rute perdeu o emprego, foi despejada e teve de ir para a favela. "Eu não era favelada. Estava batalhando para sair da favela, fazia artesanato com gesso, estava ganhando R$ 40, R$ 50 por dia".
Não foi à polícia por medo. Foi ao Ratinho. Começou ali sua descida ao inferno.
"Um dia eu estava em casa e vi o carro da Record encostando na porta, aquele monte de traficante olhando, e me enfiaram dentro do carro. Eu não podia voltar para casa. Estava de chinelo. Me botaram no ar desse jeito... Pensei que eles iam conversar... Queriam me mostrar de frente, e eu reclamei. Aí me puseram de costas", relata.
Não mostraram o rosto de Rute, mas colocaram no ar imagens da favela. "Eu não queria que eles filmassem a casa e eles filmaram. Aí os bandidos foram em cima. Falavam que iam matar a família toda. A produção tirou o corpo fora. Falou que isso não era problema do Ratinho, que era do pessoal que filma para o programa".
Na mesma noite, os traficantes arrombaram o barraco em que vivia, mas Rute havia fugido. No dia seguinte, os traficantes já haviam descoberto onde ela estava e Rute ficou sem eira nem beira.
"Fui na Record durante uma semana. No desespero, falei: "Deixo minhas crianças aqui e vou sumir'. Aí o pessoal da produção falou: "Manda ela pro hotel"'.
O hotel, segundo Rute, era "pior do que a favela". "Eu morava numa favela, mas meus filhos nunca viram o que estavam vendo no hotel. Ali não é lugar de crianças. Aquilo é uma humilhação".
Enquanto vivia no hotel, Rute pediu ajuda à produção do Ratinho para tirar seus móveis e bens da favela. "Ninguém fez nada e os bandidos pegaram tudo. Foi o que eu juntei em 18 anos. É uma vida".
Na última quarta-feira, Rute saiu do hotel, recebeu R$ 300 da produção e foi morar de favor num quartinho de fundos na zona norte. Vai voltar a fazer artesanato em gesso. Seus três filhos perderam o ano escolar de 1998.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.