São Paulo, sexta-feira, 08 de julho de 2011

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9ª FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY

CRÍTICA AUTOBIOGRAFIA

Claude Lanzmann descreve vida de escapadas fantásticas

Em "A Lebre da Patagônia", diretor de "Shoah" reúne relatos de sobrevivência e emboscadas desde jovem

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Aos 84, Claude Lanzmann escreveu: "Não estou nem desinteressado nem cansado do mundo, cem vidas, eu sei, não me cansariam".
A frase está em sua autobiografia "A Lebre da Patagônia", escrita em 2009, cuja publicação coincide com a visita do autor ao Brasil para os festejos da Flip -o autor fala às 19h30 na mesa "A Ética da Representação". Cem vidas? Lendo o livro de Lanzmann, ele parece já ter gasto (e bem gasto) umas 30 e tantas.
Com menos de 20 anos, enfrentou numa emboscada os tiros e os mísseis do Exército alemão nas atividades da resistência francesa à ocupação nazista. Na mesma época, quase foi preso pela Gestapo, não fosse pela intervenção providencial do pai, resistente como ele (um não sabia da clandestinidade do outro até que se deu uma conversa de partir o coração).

RISCO DE MORTE
Claude Lanzmann arriscou a vida muitas outras vezes. Enfiou-se numa habitação submarina idealizada por Jacques Cousteau, de quem foi "ghost-writer". Aguentou os bombardeios franceses num abrigo feito pelos revoltosos argelinos na guerra de independência dos anos 1960.
Salvou uma enfermeira coreana, por quem se apaixonou, de um afogamento em Pyongyang. Quase se afogou ao nadar nas perigosas águas do litoral israelense. Quase morreu nos Alpes, enquanto Simone de Beauvoir esperava socorro, noite alta, numa solidão nevada.
Teve hemorragia séria depois de bater a cabeça na vitrine de uma loja de luxo, em Paris, após ter consentido numa compra extravagante para a mulher por quem estava apaixonado no momento.

RÁPIDO DEMAIS
Paixões e inquietude, uma "inquietude cinética", como diz ele mesmo, tomam conta desta autobiografia de quase 400 páginas, em que tudo parece ter acontecido rápido demais.
A vida, para Lanzmann, tem com efeito aquela força invejável e nietzschiana que se concentra na manifestação de uma vontade pura. Tudo, nele, é "vontade". Pouco lhe importam os riscos envolvidos.
Entra em um supersônico israelense durante a realização de seu documentário focado no Exército de um país que ele aprendeu a amar tardiamente. Joga-se na tarefa, dificílima e interminável, de filmar "Shoah", o imenso documentário sobre os campos de extermínio nazistas.
Ainda quase adolescente, sem dinheiro, depois de uma briga pavorosa com sua mãe meio louca, veste-se de padre para coletar donativos entre a burguesia de Paris.
"A Lebre da Patagônia" é o relato de uma série de escapadas e sobrevivências fenomenais. O título do livro se inspira num conto da argentina Silvina Ocampo (1903-1993), em que uma lebre, perseguida por cães, pergunta-lhes: "Aonde vamos?". Os cachorros respondem: "Até o fim da tua vida".
Depois da vitória sobre os nazistas, Lanzmann não se cansa de ver novas manifestações de antissemitismo e de injustiça. Os cães continuam vivos. Lanzmann, felizmente, continua mais vivo ainda.
Sua autobiografia produz, a cada página, movimentos de admiração e simpatia. Mas algo parece faltar à personalidade, tão viva, do autor. É que ele está vivo demais. Quem sabe, aos 110 anos, ele possa escrever com mais calma.

A LEBRE DA PATAGÔNIA

AUTOR Claude Lanzmann
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Eduardo Brandão e Dorothée de Bruchard
QUANTO R$ 59 (472 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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