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MARCELO COELHO
A festa do ovo podre
O governo Lula revolta mais por seu "elitismo" do que pelas verbas dadas ao Bolsa Família
JURO QUE não queria ser moralista. Essa coisa de lamentar a
decadência dos costumes nunca adiantou muito. Mas é difícil não
reagir com repugnância ao vídeo
que circula no YouTube, mostrando
grã-finos num embalo total, não sei
se em Ipanema ou no Leblon.
A diversão da turma, aboletada no
terraço de um apartamento à beira-mar, é atirar ovos nas pessoas e carros que passam pela rua. "Boninho",
diretor do programa "Big Brother
Brasil", dá a receita de como apodrecê-los: a tecnologia exige algum treino e paciência.
Ele injeta éter no ovo, espera três
dias, e só então o produto adquire
condições ideais para ser arremessado. Boninho diz que já acertou
"muita vagabunda em São Paulo"
com os tais ovos.
Poderia incluí-los no próprio "Big
Brother", se é que isso já não faz parte do repertório habitual de baixarias do programa. No YouTube, há
cenas de arremesso ao vivo. Senhoras de idade respeitável também são
entrevistadas, dizendo-se adeptas
dessa prática.
Narcisa Tamborindeguy declara
que não joga ovos apenas; por vezes,
atira flores de seu apartamento. O
que mostra que, afinal, não devemos
perder as esperanças na delicadeza
humana.
Claro que não é a mesma coisa que
espancar empregadas domésticas,
como também acontece, mas a alegria desbragada dos entrevistados, a
completa certeza de que são donos
do mundo, lá das alturas de um prédio de luxo, causa repulsa imediata.
Fui então ler os comentários escritos pelos visitantes do site. Conseguem ser mais horríveis do que as
cenas do filminho. Muitos insistem,
aos palavrões, na circunstância de
que os jogadores de ovos são cariocas. Como se elites paulistas, amazonenses, baianas ou gaúchas fossem
melhores.
De resto, o termo "elites" deveria
passar por um bom período de férias, antes de voltar a ser utilizado.
No discurso governista, os que reclamam da crise aérea ou de qualquer
outra pertencem às "elites", que são,
por natureza, "conservadoras" e
"golpistas".
Oposição não é golpismo, e aquilo
que hoje em dia se qualifica como
"moralismo pequeno-burguês" foi
um dos motores ideológicos do PT
durante décadas. Falo isso, mas logo
tenho de engolir também a notícia
de que, numa passeata antilulista
em São Paulo, houve quem gritasse
"Acorda, milico!" ao passar na frente
do Comando Militar do Sudeste.
Tento não desanimar. Acho que
há alguns paradoxos na situação. É
banal dizer que o país está dividido.
A oposição ao governo se torna mais
inconformada uma vez que a popularidade inalterada de Lula nas pesquisas aparece como uma surpresa
aberrante para quem, atrás das guaritas, tem contato mínimo com o
"povão".
Ah, sim, são as "elites brancas"...
Mas justamente aí o discurso lulista
se atrapalha. Pois quando uma diretora da Anac é flagrada fumando
charuto numa festa em plena crise
aérea, quando uma ministra bem-vestida recomenda que o passageiro
"relaxe e goze", ou quando um assessor de gravata faz um solene "top,
top" no seu gabinete, o gestual, a pose e a soberba dessas atitudes nada
mais são do que exemplos consumados do comportamento das "elites".
O governo Lula revolta mais por seu
"elitismo" do que pelas verbas que
destina ao Bolsa Família.
Do mesmo modo que paulistas e
cariocas se engalfinham numa rivalidade deprimente, tucanos e petistas se acusam dos defeitos que, em
sua esmagadora maioria, compartilham com orgiástica efusão.
E quem é que, na intimidade do
escritório ou no tumulto de uma redação, já não fez fora de hora os gestos grosseiros de Marco Aurélio
Garcia? Só espero que ninguém do
governo jogue ovos pela janela. Verdade que há coisas piores a fazer,
nem sempre fáceis de registrar em
câmeras de vídeo.
Esse é outro complicador da situação. O todo e o pormenor, o detalhe
debochado e o absurdo estrutural
perdem as suas dimensões reais, à
medida que uma foto de celular ou
uma câmera secreta revelam, a cada
dia, uma nova rodada de escândalos
de conduta.
Não que não sejam revoltantes e
significativos do quadro mais amplo
de deboche público e privado. Mas
consome-se tudo isso como pornografia, num misto de excitação,
cumplicidade, repúdio e desejo. Estamos, quem sabe, exorcizando nossos próprios fantasmas.
O cidadão reage ao vídeo do Boninho escrevendo uma série de podridões. Há quem se olhe no espelho e
não se reconheça.
coelhofsp@uol.com.br
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