São Paulo, sábado, 08 de agosto de 2009

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Amado Onetti

Em artigo para a Folha, o espanhol Juan Cruz lembra encontros que teve com os escritores brasileiro e uruguaio

JUAN CRUZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Juan Carlos Onetti (1909-1994) vivia de costas para a parede, mas se apegava à memória. Aqueles que o associam ao álcool e à desordem nada sabem sobre Onetti e nunca o viram, em pé ou na cama, na casa em que passou seus dez últimos anos de vida, em Madri. A vida cotidiana não agradava a Onetti. Não ia a festas, não gostava de lançamentos. Era um misantropo.
Mas, ao mesmo tempo, foi um homem de muitíssimos amigos, com os quais se correspondia por longo tempo. Essas cartas revelam um homem cordial, que sofria altos e baixos combatidos por meio da escrita ou de visitas a bares nos quais se distraía com álcool.
Mas Onetti não era um bêbado. E tampouco um desordeiro. A ordem de sua vida transparecia em seu estado mental e até no doméstico: ele costumava dizer, da cama, a Dolly (sua mulher durante meio século) onde estavam as coisas que lhe importavam. E nem bebia tanto: Dolly misturava muita água em seus uísques, e Onetti bebia só vinho tinto, de uma marca específica da qual costumava ter muitas garrafas. Escrevia e lia todos os dias.
Durante certo período, no tempo em que viveu de cama, escreveu diversos romances e artigos para a imprensa, os quais, somados aos seus direitos autorais e aos proventos do Prêmio Cervantes (que recebeu em 1980), permitiam que ele e Dolly sobrevivessem. A viúva ainda mantém a casa do casal em Madri, um apartamento ensolarado na Avenida de América, onde muitas vezes visitei o escritor, e em algumas ocasiões o entrevistei.

Entrevista
Escrevia em agendas velhas, que ganhava de presente de amigos; fazia isso contemplando a parede, como Julio Cortázar, apoiado sobre o costado esquerdo de seu corpo fatigado e insone. Em janeiro de 1993, quando estava a ponto de sair o que viria a ser o seu último romance, "Cuando Ya No Importe", eu estava cuidando da edição do livro, mas fui visitá-lo como jornalista, levando um gravador. Onetti não gostava de entrevistas, mas se submeteu àquela com gosto porque teria fins promocionais. Algumas pessoas acreditam que a Onetti importava apenas escrever, e que ele pouco se incomodava com o destino de seus livros.
Falso. Tinha vaidades e ego, como todo mundo, e, a exemplo de qualquer escritor, apreciava que fizessem propaganda daquilo que escrevia.
E era para isso que eu estava lá, a fim de entrevistá-lo para uma revista publicada pela minha editora, a Alfaguara. Era uma manhã de janeiro, fria e luminosa, e Onetti parecia muito feliz. Levei uma prova do que viria a ser a capa, e ele se dispôs a escrever à mão as primeiras linhas do romance ("Faz uma quinzena ou um mês que minha atual mulher vive em outro país. Não houve reprovações ou queixas. Ela é dona de seu estômago e de sua vagina. Como não compreendê-la se ambos havíamos dividido, quase exclusivamente, a fome?), antes de começar a conversa.
Falamos de muitas coisas durante algumas horas. De Gabriel García Márquez, de Julio Cortázar, de José María Arguedas, de Mario Vargas Llosa, escritores cujas histórias ele conhecia muito bem e de quem sabia muitas coisas divertidas ou dramáticas... Em um momento determinado, sorriu e repentinamente me disse: "Tenho uma história ótima sobre Jorge Amado".
Em seu livro de memórias, Amado conta que conheceu Onetti em seu primeiro exílio, no Uruguai, no início dos anos 40. Onetti na época trabalhava para a Reuters e tinha certa influência econômica. Os dois se tornaram amigos, e logo aconteceu aquilo que Onetti me relatou. Repito as exatas palavras do escritor uruguaio: "Ele estava sendo perseguido no Brasil porque era comunista e se exilou em Montevidéu. A polícia brasileira perseguia os comunistas e seus simpatizantes; a polícia introduzia cera em seus intestinos... Era aterrorizante. Apareciam cadáveres com a pele do ventre destroçada. Mas, enfim, estávamos com Jorge Amado em Montevidéu e foi muito divertido. Ele pediu, em segredo, para usar meu apartamento para uma entrevista com o secretário-geral do Partido Comunista brasileiro.
Estavam planejando a contra, a revolução contra a ditadura. Bem, eu disse que "a mim isso não incomoda; tome lá", e entreguei a chave. Ele avisou ao porteiro que teria uma entrevista de negócios. No dia seguinte, perguntei ao porteiro: "Meu amigo veio?" O porteiro respondeu que sim, tinha vindo. "E teve sua entrevista?" O porteiro respondeu: "Entrevista muito boa. E que peitos tinha o secretário-geral do Partido Comunista brasileiro!"."
Onetti encerrou a história e logo acrescentou, rindo: "A entrevista era com uma mulher! Que bobo! Por que não me disse?".

Comunismo
O fato é que Amado não disse, e Onetti contou a história como se estivesse relatando a travessura juvenil de um amigo muito querido. Dois anos antes, eu havia entrevistado Jorge Amado, em Paris. O autor de "Navegação de Cabotagem" me disse que havia deixado de acreditar que o comunismo fosse a salvação da humanidade. Ao menos o comunismo criado na Rússia. Estava perto dos 80 anos, era agosto de 1991, e ainda trazia no olhar a saudável alegria que Onetti deve ter visto naqueles dias.


JUAN CRUZ é escritor, diretor-adjunto do jornal espanhol "El País" e autor de "Toda la Vida Preguntando", entre outros livros

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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