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Amado Onetti
Em artigo para a Folha, o espanhol Juan Cruz lembra encontros que teve com os escritores brasileiro e uruguaio
JUAN CRUZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Juan Carlos Onetti (1909-1994) vivia de costas para a parede, mas se apegava à memória. Aqueles que o
associam ao álcool e à desordem nada sabem sobre Onetti e
nunca o viram, em pé ou na cama, na casa em que passou seus
dez últimos anos de vida, em
Madri. A vida cotidiana não
agradava a Onetti. Não ia a festas, não gostava de lançamentos. Era um misantropo.
Mas, ao mesmo tempo, foi
um homem de muitíssimos
amigos, com os quais se correspondia por longo tempo. Essas
cartas revelam um homem cordial, que sofria altos e baixos
combatidos por meio da escrita
ou de visitas a bares nos quais
se distraía com álcool.
Mas Onetti não era um bêbado. E tampouco um desordeiro.
A ordem de sua vida transparecia em seu estado mental e até
no doméstico: ele costumava
dizer, da cama, a Dolly (sua mulher durante meio século) onde
estavam as coisas que lhe importavam. E nem bebia tanto:
Dolly misturava muita água em
seus uísques, e Onetti bebia só
vinho tinto, de uma marca específica da qual costumava ter
muitas garrafas. Escrevia e lia
todos os dias.
Durante certo período, no
tempo em que viveu de cama,
escreveu diversos romances e
artigos para a imprensa, os
quais, somados aos seus direitos autorais e aos proventos do
Prêmio Cervantes (que recebeu em 1980), permitiam que
ele e Dolly sobrevivessem. A
viúva ainda mantém a casa do
casal em Madri, um apartamento ensolarado na Avenida
de América, onde muitas vezes
visitei o escritor, e em algumas
ocasiões o entrevistei.
Entrevista
Escrevia em agendas velhas,
que ganhava de presente de
amigos; fazia isso contemplando a parede, como Julio Cortázar, apoiado sobre o costado esquerdo de seu corpo fatigado e
insone. Em janeiro de 1993,
quando estava a ponto de sair o
que viria a ser o seu último romance, "Cuando Ya No Importe", eu estava cuidando da edição do livro, mas fui visitá-lo
como jornalista, levando um
gravador. Onetti não gostava de
entrevistas, mas se submeteu
àquela com gosto porque teria
fins promocionais. Algumas
pessoas acreditam que a Onetti
importava apenas escrever, e
que ele pouco se incomodava
com o destino de seus livros.
Falso. Tinha vaidades e ego, como todo mundo, e, a exemplo
de qualquer escritor, apreciava
que fizessem propaganda daquilo que escrevia.
E era para isso que eu estava
lá, a fim de entrevistá-lo para
uma revista publicada pela minha editora, a Alfaguara. Era
uma manhã de janeiro, fria e luminosa, e Onetti parecia muito
feliz. Levei uma prova do que
viria a ser a capa, e ele se dispôs
a escrever à mão as primeiras
linhas do romance ("Faz uma
quinzena ou um mês que minha atual mulher vive em outro
país. Não houve reprovações ou
queixas. Ela é dona de seu estômago e de sua vagina. Como
não compreendê-la se ambos
havíamos dividido, quase exclusivamente, a fome?), antes
de começar a conversa.
Falamos de muitas coisas durante algumas horas. De Gabriel García Márquez, de Julio
Cortázar, de José María Arguedas, de Mario Vargas Llosa, escritores cujas histórias ele conhecia muito bem e de quem
sabia muitas coisas divertidas
ou dramáticas... Em um momento determinado, sorriu e
repentinamente me disse: "Tenho uma história ótima sobre
Jorge Amado".
Em seu livro de memórias,
Amado conta que conheceu
Onetti em seu primeiro exílio,
no Uruguai, no início dos anos
40. Onetti na época trabalhava
para a Reuters e tinha certa influência econômica. Os dois se
tornaram amigos, e logo aconteceu aquilo que Onetti me relatou. Repito as exatas palavras
do escritor uruguaio:
"Ele estava sendo perseguido
no Brasil porque era comunista
e se exilou em Montevidéu. A
polícia brasileira perseguia os
comunistas e seus simpatizantes; a polícia introduzia cera em
seus intestinos... Era aterrorizante. Apareciam cadáveres
com a pele do ventre destroçada. Mas, enfim, estávamos com
Jorge Amado em Montevidéu e
foi muito divertido. Ele pediu,
em segredo, para usar meu
apartamento para uma entrevista com o secretário-geral do
Partido Comunista brasileiro.
Estavam planejando a contra, a
revolução contra a ditadura.
Bem, eu disse que "a mim isso
não incomoda; tome lá", e entreguei a chave. Ele avisou ao
porteiro que teria uma entrevista de negócios. No dia seguinte, perguntei ao porteiro:
"Meu amigo veio?" O porteiro
respondeu que sim, tinha vindo. "E teve sua entrevista?" O
porteiro respondeu: "Entrevista muito boa. E que peitos tinha
o secretário-geral do Partido
Comunista brasileiro!"."
Onetti encerrou a história e
logo acrescentou, rindo:
"A entrevista era com uma
mulher! Que bobo! Por que não
me disse?".
Comunismo
O fato é que Amado não disse, e Onetti contou a história
como se estivesse relatando a
travessura juvenil de um amigo
muito querido. Dois anos antes,
eu havia entrevistado Jorge
Amado, em Paris. O autor de
"Navegação de Cabotagem" me
disse que havia deixado de
acreditar que o comunismo
fosse a salvação da humanidade. Ao menos o comunismo
criado na Rússia. Estava perto
dos 80 anos, era agosto de 1991,
e ainda trazia no olhar a saudável alegria que Onetti deve ter
visto naqueles dias.
JUAN CRUZ é escritor, diretor-adjunto do jornal
espanhol "El País" e autor de "Toda la Vida Preguntando", entre outros livros
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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